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'The Last of Us' vai mesmo transformar os games numa mina de ouro para a TV?

Para Hollywood, personagens dotados de uma audiência cativa nos videogames não vêm sendo garimpados como poderiam ser

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Conor Dougherty
Nova York | The New York Times

Quando "The Last of Us" saiu, em 2013, a premissa do bem-sucedido videogame —um fungo transforma as pessoas em zumbis, destruindo a sociedade, e o que resta do governo é controlado por fascistas— parecia se enquadrar claramente no reino da ficção. Uma década mais tarde, será lançada uma série da HBO baseada no jogo, e os telespectadores parecem muito mais familiarizados com a possibilidade de um apocalipse causado por germes.

Pedro Pascal em cena da série "The Last of Us", da HBO Max
Pedro Pascal em cena da série 'The Last of Us', da HBO Max - Divulgação

A realidade daquilo pelo que o mundo vem passando nos últimos três anos é mencionada em uma cena de abertura arrepiante na qual um par de cientistas descreve os riscos de diversos vírus, diante da audiência de um talk show.

Depois de um deles descrever algo parecido com a Covid-19, o outro faz com que tanto os espectadores do programa fictício quanto os telespectadores reais caiam em um silêncio assustado, quando expõe as maneiras pelas quais a crise do clima poderia tornar as coisas muito, muito piores.

"Parte de escrever para uma audiência é simplesmente sentir em seus ossos aquilo que é conhecimento cultural", diz Craig Mazin, um dos showrunners da série. "Por outro lado, não se trata de uma série sobre a pandemia –o tema é o que significa sobreviver e qual é o objetivo da sobrevivência. Portanto, tiramos esse assunto do caminho muito rapidamente."

Durante os últimos dez anos, quando os videogames se tornaram muito mais vívidos e complexos, seus criadores passaram a utilizar a forma para propor histórias ricas, baseadas em personagens que rivalizam em qualidade com os de cinema e televisão.

"The Last of Us", por exemplo, é menos sobre a pandemia em si do que sobre a relação pai-filha entre um contrabandista chamado Joel, interpretado por Pedro Pascal na série, e uma adolescente de 14 anos chamada Ellie, papel de Bella Ramsey.

A viagem deles pelos Estados Unidos, enfrentando zumbis e canibais, provoca questões sobre os limites do amor e as atrocidades que um pai se dispõe a cometer para proteger um filho.

Mas embora um punhado de adaptações de videogames para as telas, como "Tomb Raider" e "Sonic", tenha faturado dinheiro suficiente para justificar continuações, existe a sensação de que, diferentemente por exemplo das histórias em quadrinhos, as narrativas dos videogames nunca foram traduzidas como mereceriam.

"Muitas das adaptações vêm sendo embaraçosas", diz Neil Druckmann, que comandou a equipe de criação de "The Last of Us" e a da continuação do videogame, "The Last of Us Part 2", que saiu em 2020, e criou a série da HBO com Mazin.

Para Hollywood, isso significa que uma mina de ouro de propriedade intelectual, dotada de uma audiência cativa de gamers, não vem sendo garimpada. Dado o retrospecto dos criadores —Mazin criou "Chernobyl", uma minissérie premiada com o Emmy, e Druckmann e o seu estúdio, Naughty Dog, são considerados como pontos de referência para o desenvolvimento de narrativas em games—, os fãs esperam que "The Last of Us" seja diferente.

De qualquer modo, os espectadores devem se preparar para ver mais videogames nas telas em breve. Outras franquias populares de videogames que têm adaptações para TV e cinema em produção incluem "Twisted Metal", "Ghost of Tsushima" e "Assassin's Creed".

Em uma entrevista conjunta por vídeo no final do mês passado, Mazin e Druckmann falaram sobre "The Last of Us", sobre o que mudaram e não mudaram na história do jogo e sobre os motivos para que seu conceito de adaptação fosse cortar grande parte da ação a fim de fazer com que o mundo pós-apocalíptico parecesse mais real. Abaixo, trechos editados da conversa.

Os jogos 'Last of Us' falam de uma pandemia em que o fungo cordyceps, um organismo real capaz de tomar o controle dos corpos e mentes de insetos, salta para os seres humanos e transforma as pessoas em zumbis. De repente, essa premissa passou a parecer muito menos fantástica.

Mazin: Neil tomou a decisão inteligente, todos aqueles anos atrás, de dizer, "olha só, em vez de um vírus zumbi inventado e sem nome, ou de um soro causador da raiva, ou de algum inferno sobrenatural que surgiu para fazer os mortos caminharem sobre a terra...".

Druckmann: Radiação!

Mazin: Sim, radiação, o que é simplesmente absurdo. "Em vez de tudo isso, por que não vamos procurar alguma coisa real?" E ele a encontrou. O que acontece é o que o cordyceps causa nas formigas. Adoro o lado científico disso.

Druckmann: Parte do sucesso do jogo foi o fato de tentarmos tratar o enredo da forma mais fundamentada que pudéssemos. E na série fomos capazes de levar essa filosofia ainda mais longe. Portanto, creio que a razão para que a pandemia, nos jogos, pareça tão real, embora tenha sido escrita antes da nossa atual pandemia, é que estávamos olhando para situações como o Katrina. Estávamos contemplando situações em que o governo falha, em que as pessoas podem agir de modo verdadeiramente egoísta, e também em que podemos ver grandes atos de amor.

Nos jogos, o surto surge em 2013, enquanto na série ele acontece em 2003. Já que a maior parte da história transcorre 20 anos mais tarde, depois de o mundo desmoronar, suponho que a ideia tenha sido pôr a trama nos dias de hoje?

Mazin: Eu me incomodo quando vejo séries em que aparece um letreiro na tela onde se lê "2053: Londres". E eu penso comigo mesmo que não sei o que 2053 quer dizer. A ideia de que acontece uma reviravolta do destino, e 2023, em vez de ser o que é hoje, na verdade toma essa determinada outra forma –isso cria um senso instantâneo de proximidade. Provavelmente tratei a questão como muito mais importante do que era, em minha mente, mas isso me ajudou.

Os gamers em geral consideram que as adaptações de videogames para as telas são bem horríveis. Vocês dois parecem concordar com isso, e imagino qual é a explicação de vocês para que elas tenham sido fracassos tão grandes.

Mazin: Há muita coisa horrorosa por aí.

Druckmann: Às vezes, o material de origem não é suficientemente forte para uma adaptação direta. Assim, a única coisa que resta é um nome que tem algum valor para as pessoas que decidem fazer uma adaptação, mas na realidade o trabalho começa do zero. Em outros casos, as pessoas que estão no comando não são gamers. Elas não compreendem o que é que torna aquilo especial. Elas se agarram a coisas realmente superficiais e acreditam, por exemplo, que muitos gamers queiram ver determinados momentos, ou certas armas, do jogo reproduzidos.

Mazin: Os videogames excelentes são excelentes por causa da jogabilidade, mas conceitualmente é possível que já sejam cópias de alguma coisa. Uma cópia de "Aliens". Uma cópia de "Caçadores da Arca Perdida". Quando você adapta isso, termina tendo uma cópia de uma cópia e a sensação pode ser a de uma falta de frescor.

Então, o que vocês tentaram fazer de diferente?

Druckmann: O mais importante era manter a alma da história, o seu tema, aqueles relacionamentos. O que dá vida a uma série são os personagens, as discussões filosóficas sobre se os fins justificam os meios, e sobre a dimensão da tribo com que a pessoa vai se importar.

A parte menos importante foi o gameplay. No jogo, temos longas sequências de ação para pôr o jogador em um estado de fluxo, o que o leva a se ligar melhor ao personagem –a se ver como o personagem. Mas se você se limita a tentar pôr isso na tela de um modo passivo, não vai funcionar. E essa é a coisa que as pessoas muitas vezes não entendem. As conversas com Craig e com a HBO, e o encorajamento que recebi, e adorei, foram no sentido de que eu não me concentrasse na ação.

Tendo em conta o número de fracassos que já aconteceram, pelo menos em termos criativos, por que vocês acham que o apetite da televisão e do cinema por videogames de repente se tornou tão grande?

Mazin: Há duas razões possíveis, uma boa e a outra não tão boa. A indústria dos videogames vem realizando alguns trabalhos notáveis. Parece natural que, no momento em que os jogos chegam a um patamar de criatividade tão impressionante, as pessoas comecem a pensar em transferir isso para outras mídias. Essa é a razão boa.

Já a razão ruim é que um sujeito qualquer em uma sala, que nunca jogou videogames, veja um PDF sobre o número de cópias de um jogo vendidas e pense "bem, vamos adquirir essa história". "Precisamos do título e do personagem, e o personagem deve ser parecido com o sujeito do jogo, e, fora isso, não faz diferença –a gente contrata uns caras."

Falem sobre algumas das diferenças entre construir um personagem para um meio interativo e construir isso para um meio passivo?

Druckmann: No caso de um jogo, existem certas restrições. Joel [o principal personagem jogável de "The Last of Us"] precisa ser suficientemente capaz de espelhar o que o jogador faz, no jogo. Ou seja, em uma cena ele vai estar agachado e vai estar matando inimigos. Se de repente tivéssemos uma cena em que ele se queixa de dor nos joelhos, surgiria uma desconexão.

Já para o Joel da série, porque não precisamos criar recursos para que ele caminhe agachado ou que o ajudem a matar toda aquela gente, surgiu a ideia de "e se explorarmos sua idade e o quanto ele está desgastado, depois de tantos anos?". Fisicamente, ele se torna uma pessoa diferente e mais realista do que aquilo que poderíamos ter feito no jogo.

Mazin: Há partes dos jogos que, devido à sua concepção, precisam violar a realidade. Em "The Last of Us" —ou realmente qualquer jogo onde o personagem seja alguém que porta armas e luta contra outras pessoas que portam armas – é inevitável que ele leve um tiro. E depois ele se cura com uma atadura, alguns comprimidos, algum objeto de socorro do jogo, não importa.

Assim, explorar a fragilidade do corpo faz parte da forma como honramos essa mídia diferente. Um único disparo, se não for fatal, pode prejudicar o personagem permanentemente, como ser humano. Não há ataduras para isto.

Vocês estão ansiosos sobre como os fãs do jogo irão reagir às mudanças?

Mazin: O meu trabalho era representar os fãs do jogo, pensar em mim como representante de muitas pessoas, e perguntar o que seria importante para mim, o que me incomodaria se não estivesse na série. Acredito que a maioria dos fãs vai reagir positivamente ao que fizemos, porque o fizemos com amor. Mas se não for essa a reação, também compreendo. É parte de estar profundamente ligado a algo.

Druckmann: O meu receio, e isso expande o assunto para uma conversa mais ampla sobre a ideia de fãs devotados, é que nosso elenco ou qualquer pessoa da equipe seja atacada ou insultada porque fizemos certas mudanças. Depois de "The Last of Us Part 2", coisa alguma do que as pessoas dizem online me atinge. Mas odeio que possa atingir alguém mais.

Vocês estão falando do assédio online, incluindo ameaças de morte, relacionado, entre outras coisas, ao gênero e à sexualidade de certos personagens nos jogos 'Last of Us', um tema que também têm destaque na série.

Druckmann: Aprendi a simplesmente aceitar e a não dar importância demais a essas coisas. Tenho a tendência de não me deixar levar pelo medo. Na verdade, me inclino mais na direção oposta —se existe uma reação negativa a uma ideia, logo penso que aquela é uma ideia que vale a pena explorar.

Como fã dos jogos, me apanhei tendo uma espécie de reação inversa, inesperada, à Ellie da série, e pensando que "mas essa não é Ellie". Isso me fez compreender que tenho uma ligação forte com a Ellie do jogo, que leva a voz de Ashley Johnson, mas ela é uma personagem digital. Isso é diferente de um ator de carne e osso, que você percebe que é uma pessoa real e pode ser vista fazendo outros trabalhos, enquanto Ellie não pode ser vista em qualquer outro lugar, e por isso ela parece pertencer totalmente à história.

Mazin: O que eu disse a Bella é que as pessoas provavelmente reagiriam a ela de maneira não muito diferente do que Joel reage, questionando "quem é essa?". "Essa não é minha filha. Não é a pessoa que eu amo. A pessoa que amo tem tal aspecto e age de tal maneira, e você não é aquela pessoa... Mas acho que de qualquer jeito estou preso a você por algum tempo." E logo em seguida, "bem, estou começando a gostar de você, na verdade, acho que você é ótima, quer saber?". "Eu mataria qualquer um para proteger você."

É assim que funciona no caso de Joel e Ellie, e é assim que acho que vai funcionar para a parte do público que, como você e eu, tem um grande apego à Ellie que Neil e Ashley criaram no jogo. É isso o que Bella faz, quase por magia. Bella não pede aprovação, estou falando da Ellie que ela interpreta, e simplesmente é aquela personagem, e você, como Joel, vai se apaixonar por ela.

Tradução de Paulo Migliacci

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