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Antologia de contos eróticos revela pelo sexo um Brasil deflagrado

'O Corpo Desvelado' reúne publicações feitas de 1922 a 2022 que trazem brasilidade em suas tentativas de descobrir o corpo

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O Corpo Desvelado: Contos Eróticos Brasileiros (1922-2022)

  • Preço R$ 90 (592 págs.)
  • Autor Eliane Robert Moraes
  • Editora Cepe

O subtítulo da antologia de contos eróticos "O Corpo Desvelado", organizada por Eliane Robert Moraes, traz duas informações que apontam para um possível horizonte de leitura totalizante: são contos brasileiros e publicados entre 1922 e 2022.

Impossível não pensar em efemérides nacionais. A mais óbvia, já que diretamente relacionada com literatura, é a Semana de Arte Moderna paulistana. Mas dentro do mesmo espírito de desprovincianizar, desrecalcar, em suma, fazer o país avançar, se dá também em 1922 a criação do Partido Comunista Brasileiro e o estouro do movimento tenentista.

retrato de mulher branca de cabelos chanel e camisa branca
A crítica literária Eliane Robert Moraes, professora da USP e organizadora de 'O Corpo Desvelado', da Cepe - Divulgação

As faturas dos três movimentos são distintas e obedecem a ritmos próprios, no entanto, um movimento que atravessa o livro sugere um ponto de chegada.

Se para efeito de análise, ignorarmos os blocos temáticos propostos pela organizadora —mais interessantes que a leitura cronológicas—, e acompanharmos certo avanço formal no tempo, encontraremos um movimento curioso: a floração tardia —em relação às literaturas hegemônicas do século 20 em língua inglesa e francesa— dos procedimentos da vanguarda artística.

Um bom termo de comparação está no bloco "Das Iniciações". Da produção tardia do autor, "Frederico Paciência", de Mário de Andrade, tem forma abafada. Ares de romance realista do século 19, erotismo singelo no limite do pudicismo, quando comparado a outros autores do bloco, revela a defasagem formal em questão.

Enquanto a natureza das reflexões do narrador do modernista obedece encadeamento organizado, tanto em conteúdo como em forma, o fluxo de consciência de Caio Fernando Abreu busca algo mais próximo da confusão que se espera de iniciações eróticas, com seus momentos de tensão máxima: "Presa suculenta, carne indefesa e fraca. Como um idiota, pensei em Deborah Kerr no meio dos leões em cinemascope, cor de luxe, túnica branca, rosas nas mãos, um quadro antigo na casa da minha avó, Cecília entre os leões, ou seria Jean Simmons? figura de catecismo, os-cristãos-eram-obrigados-a-negar-sua-fé-sob-pena-de-morte, o padre Lima fugiu com a filha do barbeiro".

Ainda no mesmo bloco, a informalidade colhida da oralidade, e a falta de pudor de Reinaldo Moraes: "Então. Aconteceu foi o seguinte. Kabeto resistia com hilária macheza à ideia de ficar de quatro para ser enrabado pela cinta-caralha da Audra enquanto foderia a Mina".

A dificuldade da experiência na cidade moderna, juntamente com a oferta de tudo o tempo todo, surge em Sérgio Sant'Anna apenas na década de 1980: "Bundas e seios expostos em todas as bancas de revistas; bocetas veladas como sorvetes que não se deixassem chupar; sexo, sexo, sexo, nos letreiros luminosos dos cinemas, como se o interesse maior do homem fosse contemplar infindavelmente o ato sexual".

O ponto alto dessa "evolução" formal está espalhado pelos quatro contos de Hilda Hilst, já dos anos 1990 –"Novos Antropofágicos". A violência formal espatifa a sintaxe, o realismo e também os tabus sociais. O grotesco entra em cena e o mal-estar parece forçar outra configuração social –que no entanto não está mais dada no período.

Mas se todos os autores do livro trabalham, queiram ou não, com algum tipo de "material brasileiro" em suas tentativas de descobrir o corpo erótico, que fase do país alimenta o que chamamos de "floração vanguardista tardia"?

Já avançada a segunda metade do século 20 –quando os procedimentos da vanguarda revelam seu esgotamento de transformação histórica e são amplamente absorvidos pela linguagem publicitária–, a violência formal dos contos em questão pode ser índice do país que, a partir dos anos 80, com sua definitiva inserção no padrão de sociedades urbanas e industriais, se apresenta em estado de permanente guerra civil.

O corpo erótico libertado revela por fim seu gêmeo demoníaco: o corpo social conflagrado. Se for assim, o ponto de chegada das efemérides encontra na realização (atrasada?) da forma literária modernista a falência dos projetos de emancipação e integração social.

E a frase da organizadora sobre a dificuldade de se conhecer o corpo erótico ganha significado sinistro quando mira o corpo social: "não há luz que esgote a densidade dessa estranha noite".

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