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LGBTQIA+

Obras exaltam travestis que fizeram história nas ruas de São Paulo

Musical 'Brenda Lee e o Palácio das Princesas' e livro 'Rainhas da Noite' resgatam memória da comunidade trans

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São Paulo

Travestis têm sido relegadas à escuridão das sarjetas, praticamente invisíveis aos olhos da sociedade. Mas não há de ser assim sempre.

Dos palcos às livrarias, lançamentos recentes jogam luz sobre as vidas de travestis que fizeram história nas ruas de São Paulo dos anos 70 aos 90. São eles o musical "Brenda Lee e o Palácio das Princesas", do Núcleo Experimental, e o livro "Rainhas da Noite", de Chico Felitti.

Brenda Lee e o Palácio das Princesas
Elenco de "Brenda Lee e o Palácio das Princesas" - Alê Catan/Divulgação

Estas obras resgatam a memória —e a dignidade— das pessoas trans. Dão atenção à prostituição compulsória, à violência policial e ao estigma do HIV/Aids, problemas crônicos do segmento mais marginalizado da comunidade LGBTQIA+.

"Brenda Lee" conta a história da personagem homônima, dona de uma pensão para travestis e responsável pela fundação, em 1986, de uma casa de apoio para pessoas soropositivas. A iniciativa foi pioneira no enfrentamento à epidemia de HIV/Aids no Brasil.

"Brenda Lee era uma pessoa fora da curva", diz Fernanda Maia, que assina a dramaturgia, as letras e a direção musical da obra. "Ela ia bater o salto na mesa do secretário de Saúde, fazia de tudo para defender as travestis."

O musical, que tem um elenco majoritariamente trans, recebeu láureas dos prêmios Bibi Ferreira e Destaque Imprensa Digital. Lançado em 2021 no YouTube, retorna agora aos palcos do CCSP (Centro Cultural São Paulo), com exibições de 19 de janeiro a 5 de fevereiro.

"Rainhas da Noite" narra as trajetórias de Jacqueline Blábláblá, Andréa de Mayo e Cristiane Jordan, travestis que comandaram a prostituição na capital paulista. A partir dos relatos de pessoas que conviveram com as protagonistas, o livro as retrata como cafetinas inescrupulosas —anedotas dão conta de que Cristiane chegou a cortar o pescoço de um desafeto.

Por outro lado, elas também deixaram sua marca na cena noturna da época como atrizes, miss e vedetes. Andréa, por exemplo, era dona da lendária Prohibidu’s, boate voltada para o público travesti que ficava na rua Amaral Gurgel, sob a sombra do Minhocão.

"Existiu uma máfia da comunidade trans no centro de São Paulo, mas essa não é uma história que você encontra no Google ou nas páginas de jornal", diz o autor Felitti, que também é colunista da Folha. Ele afirma que grupos marginalizados são vítimas de um "silêncio arquival", e sua memória só se mantém viva graças à história oral.

Lançada no formato de audiolivro em 2021, a obra chega agora às livrarias.

Para além de seu caráter biográfico, "Rainhas da Noite" se destaca por fazer uma cartografia detalhada dos territórios por onde circula a comunidade trans paulistana. O livro descreve o quadrilátero formado pelas praças da República, Roosevelt, Rotary e pelo largo do Arouche como uma espécie de santuário das travestis.

Esse pedacinho da cidade continua sendo, quase meio século depois, um espaço de trabalho, lazer e moradia para esse grupo. Suas esquinas não estão livres de perigo, mas é um dos poucos lugares onde corpos trans podem transitar com alguma liberdade, sem serem vistos como alienígenas.

Se hoje pessoas trans ocupam esses e outros espaços —até mesmo o Congresso Nacional—, devem isso às gerações que vieram antes. "Tem quem ache que identidade de gênero é uma coisa nova, uma moda. Falar sobre pessoas trans que viveram no passado é uma forma de lembrar que nós sempre estivemos aqui", diz Olivia Lopes, atriz de "Brenda Lee".

O musical e o livro rejeitam lugares-comuns e estereótipos tradicionalmente associados às travestis. Aqui, elas são retratadas como sujeitos completos, com qualidades e defeitos, com direito de sonhar, amar e construir famílias.

Mas, em se tratando de histórias reais de travestis, também têm final trágico (cuidado, spoilers à frente). Brenda, Jacqueline e Cristiane foram assassinadas, enquanto Andréa morreu por causa de complicações relacionadas à aplicação precária de silicone industrial.

Estas obras indicam que as vidas de pessoas trans são foco cada vez maior do mercado artístico. Vêm na esteira de trabalhos estrangeiros sobre o mesmo universo temático, como as séries "Pose" (EUA, 2018-2021) e "Veneno" (Espanha, 2020) e o livro "O Parque das Irmãs Magníficas" (Argentina, 2019).

Representatividade importa. Pessoas trans, talvez mais do que qualquer outro grupo marginalizado, dependem da arte para obter sustento e para se fazerem enxergar pela sociedade.

Vale dizer que nem "Brenda Lee" nem "Rainhas da Noite" foram escritas por pessoas trans. Para os autores, isso impõe desafios. "Nós, pessoas cis, não podemos nos alijar desse debate", diz Maia. Segundo ela, o diálogo com as travestis do elenco foi fundamental para evitar imprecisões e estigmas.

Além disso, as obras passam ao largo das vivências de homens trans e pessoas transmasculinas. De acordo com Felitti, esse segmento pouco apareceu em suas pesquisas, o que se deve, em parte, a um processo de apagamento dentro da própria comunidade trans.

Por fim, cabe perguntar se há espaço nas artes para narrativas de pessoas trans dos dias atuais. Poderão contar as suas histórias em vida, ou precisarão esperar décadas até que alguém se interesse por elas?

Lopes não é muito otimista em relação a isso. Ela lembra que são poucas as pessoas trans com recursos necessários para se dedicar a uma carreira artística, e precisam enfrentar uma indústria que lhes é hostil. "O caminho para nós ainda é muito difícil", diz.

Brenda Lee e o Palácio das Princesas

Rainhas da Noite

  • Preço R$ 64,90 (256 págs.), R$ 39,90 (e-book)
  • Autor Chico Felitti
  • Editora Companhia das Letras
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