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Após era Bolsonaro, livro infantil tenta 'fazer as pazes' com a bandeira do Brasil

'Lábaro', do designer Elifas Andreato, morto em 2022, foi ilustrado por sua filha, que temia associação com ex-presidente

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São Paulo

Um livro para crianças sobre a bandeira do Brasil é uma obra pró-Bolsonaro?

Era grande o risco de que o recém-lançado "Lábaro: O Enigma da Bandeira Brasileira", da editora Palavras , livro todo verde, amarelo, azul e branco, tivesse essa interpretação, apesar de ter intenção oposta, diz Laura Andreato, ilustradora da obra.

Ilustração do livro infantil 'Lábaro - O Enigma da Bandeira Brasileira', de Elifas Andreato - Reprodução

"O lançamento havia sido previsto para pouco antes das eleições do ano passado, e eu estava com muito medo de que o livro pudesse ter uma leitura equivocada, que fosse vinculado aos significados horríveis atribuídos à bandeira nos últimos quatro anos", diz ela.

O lançamento acabou sendo adiado para depois das eleições, quando a bandeira seguia abraçada por movimentos golpistas contrários à vitória de Lula, mas já sob a expectativa de uma retomada de cores mais democráticas no país. "O livro chega no momento perfeito. Precisamos fazer as pazes com a bandeira brasileira", afirma a artista.

Laura, de 44 anos, é filha de Elifas Andreato, autor do texto de "Lábaro" e um dos mais conceituados designers gráficos do país. Ele morreu em março do ano passado, aos 76 anos, quando começava a estudar as ilustrações que faria para o livro e estava empolgado com a ideia de apresentar para as crianças o que considerava o verdadeiro significado da bandeira.

"A ideia foi mostrar que esse símbolo não tem nada a ver com esse patriotismo e nacionalismo que flertam com ideologias ditatoriais", diz Laura.

Andreato se tornou reconhecido pela criação de capas icônicas de discos nos anos 1970 e 1980, entre elas as de "Almanaque", de Chico Buarque, "Luz das Estrelas", de Elis Regina, e "Nervos de Aço", de Paulinho da Viola. Uma das mais marcantes foi a do infantil "Arca de Noé", de Vinicius de Moraes, em que inovou ao ilustrar bichos a serem recortados e colados, de modo que cada criança fizesse a própria capa.

Foi também nessa época que Elifas se voltou a um outro resgate da bandeira nacional, que se assemelha ao atual. Naqueles anos, o símbolo estava atrelado à propaganda ufanista da ditadura militar, a exemplo da campanha Brasil, "Ame-o ou Deixe-o".

"A bandeira esteve muito presente nos trabalhos do meu pai, com essa ideia de que a retomada desse símbolo era parte da redemocratização", diz Laura. Antes disso, durante a ditadura, o artista havia atuado em publicações da imprensa alternativa de oposição aos militares, como os jornais Movimento e Opinião e a revista Argumento.

Capa do livro 'Lábaro - O Enigma da Bandeira Brasileira', de Elifas Andreato - Reprodução

Andreato percebeu logo o sequestro da bandeira pelo bolsonarismo. Sabia que o símbolo teria de ser novamente resgatado, o que deu a ele a ideia de produzir um livro para crianças. "Ele tinha um radar muito bom para captar o momento histórico", diz Laura.

"Lábaro", que Andreato escreveu à mão, num caderno —ele não gostava de computador— é uma peça de teatro. Os elementos da bandeira são os personagens. Retângulo é um professor que gosta de delimitar as coisas. Verde é esperançoso. Losango amarelo é convencido mas tem um bom coração. Circunferência azul, decidida e generosa, abriga todas as estrelas. E branco é o cara da paz.

Eles conversam sobre os símbolos e descobrem que o amor foi retirado da bandeira. O ditado "ordem e progresso" vem de um lema do positivismo, corrente cara aos militares, que diz "o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim".

Laura, que é artista plástica, conhecia bem o projeto do livro. Ela e o pai dialogavam sobre trabalho e conversaram muito sobre "Lábaro". Andreato havia, inclusive, feito uma leitura para seu neto Nuno, filho de Laura, à época com nove anos.

Quando o luto permitiu a Laura uma imersão no ateliê do pai, na casa em que morava, em Ibiúna, no interior de São Palo, ela encontrou o espelho de "Lábaro". Espelho é o nome dado ao esboço de um projeto editorial, com o planejamento da distribuição do conteúdo pelas páginas.

Lá havia apontamentos importantes, como a de que o livro fosse ilustrado só com as formas e as cores da bandeira. Mas era só um estudo preliminar, e coube a Laura desenvolver o projeto gráfico e as ilustrações, em diálogo com os traços e com os ideais do pai, "um trabalho muito difícil de concentração emocional".

Ilustração do livro infantil 'Lábaro - O Enigma da Bandeira Brasileira', de Elifas Andreato - Reprodução

Foi dela também a ideia de pedir a Rolando Boldrin, amigo de Andreato, para escrever o posfácio. "Eles dividiam a mesma forma de ver o Brasil", diz. Além de uma homenagem a ambos, pensou Laura, o texto de Boldrin seria mais uma maneira de tentar evitar que o pai fosse mal interpretado em meio à polarização política. "Era altíssimo o risco de alguém pensar ‘o Elifas pirou, depois de velho virou bolsonarista’", diz Laura, até conseguindo rir dessa possibilidade tragicômica.

Boldrin, em seu texto, falou da "viagem fora do combinado" do amigo, para onde ele próprio também logo embarcaria, em 9 de novembro do ano passado, dez dias antes do lançamento do livro, no Dia da Bandeira. "Foi mais uma comoção em torno desse projeto."

Também como homenagem a Andreato, Laura criou duas páginas com elementos da bandeira e outros símbolos, como um ponto de interrogação e um coração, para que as crianças recortem, colem e criem sua própria capa, como no disco "Arca de Noé".

Laura lembra uma lei da época da ditadura militar que proíbe que a bandeira nacional seja apresentada de formas alternativas. "Eu, como arte-educadora, considero ruim uma proibição assim. Fazer e refazer é uma forma de refletir."

No ato de recortar e colar, além do coração e do ponto de interrogação, uma estrela vermelha figura entre as azuis, verdes e amarelas. Laura ri, diz que foi uma brincadeira, um jeito de acabar logo com qualquer pretensão de uma leitura bolsonarista do livro. "A estrela vermelha não é só do PT, mas um símbolo de muitos movimentos de esquerda. Quis mesmo colocar esse contraponto, porque a bandeira está muito para o lado de lá."

Lábaro: O Enigma da Bandeira Brasileira

  • Preço R$ 55 (56 págs.)
  • Autoria Elifas Andreato
  • Editora Palavras
  • Ilustrações Laura Huzak Andreato
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