Tomie Ohtake imaginou paixão vermelha para a ópera 'Madame Butterfly'

Telas em exposição mostram como a artista se preparou e se transformou para montar os cenários da tragédia de Puccini

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Obras de Tomie Ohtake na mostra 'Tomie Dançante', no Instituto Tomie Ohtake Divulgação

São Paulo

Infinita visão —parece um sonho a imagem de um navio atracado no porto, o mar revolto. Mas é só miragem, o violino num sol maior em pianíssimo, a partitura indicando "di lontano" —de longe, em português. Tudo o que é belo já nos é distante, talvez porque a própria música deva anunciar a história de um amor impossível.

A famosa ária "Un Bel dì, Vedremo" —"um belo dia veremos", em português—, resume "Madame Butterfly", ópera do italiano Giacomo Puccini, com libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, que estreou em 1904, no La Scala, de Milão.

Obras de Tomie Ohtake na mostra 'Tomie Dançante', no Instituto Tomie Ohtake - Divulgação

A gueixa Cio-Cio-San diz esperar o tempo que for para reencontrar o tenente Pinkerton, da marinha dos Estados Unidos. Num desvario, pergunta quem se aproxima do litoral e, desesperada, estende os braços em direção à plateia, para que todos vejam o desenho da linha do horizonte. Ao recolher o gesto, o sonho se desfaz, e a mulher desata a falar da espera vã, de sua morte.

Quase oitenta anos depois da estreia, a tragédia de Cio-Cio-San provocou uma virada na obra de Tomie Ohtake. A exposição "Tomie Dançante", agora no instituto que leva o nome da artista, mostra como Ohtake se preparou para criar dois cenários para a ópera, primeiro em 1983, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, depois, em 2008, no Municipal de São Paulo.

"É uma obra em processo, as telas aqui reunidas parecem um estudo para o que ela faria no espaço cênico, com o uso de cores primárias e o trabalho com diferentes planos", diz Priscyla Gomes, que organiza a mostra.

Depois da experiência na ópera, Ohtake projetou esculturas em espaços públicos das grandes cidades, como a estrela de ferro, posta em 1985, na lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, ou a escultura de aura futurista, na avenida 23 de maio, em São Paulo.

São 45 pinturas, todas abstratas, divididas em três atos, assim como na obra de Puccini. Em "Rasgos e Combinações", estão telas dos anos 1960, quando Ohtake imaginava suas pinturas, com papéis de revistas, cortados à mão e agrupados em colagens.

Uma tela sem título de 1963 tem blocos de tinta preta, um acima do outro, indicando uma determinada direção. Esquerda, centro, depois uma guinada à direita. As laterais da tela são delimitadas por duas pinceladas espessas em azul.

Obras de Tomie Ohtake na mostra 'Tomie Dançante', no Instituto Tomie Ohtake - Divulgação

Parece, afinal, uma cortina aberta, enquanto blocos incógnitos, talvez Cio-Cio-San e sua aia Suzuki, se movimentam ao centro. Noutra pintura, o olhar do espectador percorre mais uma pincelada espessa, vermelha, em forma de meia-lua. Por isso, "Tomie Dançante" —o corpo em cena se transfigura de modo abstrato, insinuando movimento e velocidade.

Aqui, a superfície da tela é o próprio espaço cênico. Do mesmo modo, a expografia dos demais atos da mostra lembra um palco e o cenário imaginado por Ohtake duas décadas depois. As paredes são revestidas por tecidos vermelhos, e as telas, dependuradas do teto em diferentes alturas, larguras e distâncias. Sobretudo, o contraste entre os focos de luz e a escuridão valoriza o espaço vazio, onde todo drama pode ganhar forma.

Entre a luz e o breu, as obras de "Tatear a Matéria", o segundo ato da mostra, examinam a textura e a transparência das tintas. Ali estão expostas as "pinturas cegas", obras que Ohtake executava com uma venda nos olhos. A abstração tomava consciência de si, na medida em que a artista prescindia da visão, por onde a realidade figurativa se apresentava.

Mas é no terceiro ato, "Planos e Profundidades", que o espectador entende as ambições de Ohtake para "Madame Butterfly". Uma explosão vermelha toma conta da sala, as telas de grandes dimensões reforçam a opulência monocromática dos tecidos.

Em 1983, a mesma cor foi usada para representar a paixão fundadora do libreto. Depois de estudar o padrão cenográfico das montagens, Ohtake resolveu rifar a figuração de Nagasaki, tão comum à época.

No lugar das cerejeiras e da ponte sobre o rio, a artista pensou em imensos tecidos vermelhos, que chegariam até o piso e mudariam de tom conforme as cores dos holofotes. Seriam vários os tecidos, cada um sustentado numa vara cênica, apresentado em determinada cena da ópera.

O projeto foi resumido pela artista numa maquete, concebida em seu ateliê. No suicídio de Cio-Cio-San, Ohtake pensou em desfraldar os panos um por um, como a gradação do arco-íris, mas percebeu que a ária seria curta demais para tantos movimentos.

"O cenário dela causou um enorme estranhamento, mas antecipou uma tendência às montagens abstratas", afirma André Heller-Lopes, encenador e um dos diretores do Fórum Brasileiro de Ópera, Dança e Música de Concerto. "Não era fácil atuar num ambiente tão sóbrio, às vezes faltavam objetos para dialogar com a ação naturalista que se desenvolvia no palco."

Não por acaso, parte do público vaiou a montagem no Municipal do Rio, assinada por Marga Niec. Também na plateia, Ohtake ria da reação das pessoas, sabendo que de fato incomodava o gosto da época. Segundo Heller-Lopes, artistas plásticos que se aventuram na ópera podem oferecer soluções interessantes, mas nem sempre é assim. A relação entre artista e diretor cênico costuma ser complicada.

"É preciso entender que o objetivo é montar uma ópera, não um videoclipe", diz ele. "No Brasil, algumas montagens se desperdiçam, porque existe uma tendência à superficialidade, alguns gestores de teatros não entendem ou mesmo gostam dessa linguagem artística."

Não era o caso de Ohtake, que tinha noção de espacialidade e volumetria, como demonstrou em suas obras públicas. Para a montagem de 2008, ela preferiu revestir o palco com imensos painéis e, no centro do teto, pendurou uma rede de pescadores.

Obras de Tomie Ohtake na mostra 'Tomie Dançante', no Instituto Tomie Ohtake - Divulgação

Diretor da montagem, Jorge Takla conta que até tentou tirar a rede, mas foi impedido pela artista. Na visão de Ohtake, o objeto simbolizava o enredamento de Butterfly no amor por Pinkerton, uma armadilha. "Ela tinha clareza do que gostaria de fazer, era uma sobriedade japonesa, que lembrava as linhas da arquitetura moderna de seu país", diz Takla.

Ohtake não atentava somente para a estética do cenário. Tinha uma concepção particular do libreto de "Madame Butterfly", que seria determinante para a criação dos dois cenários. A artista dizia que uma mulher japonesa jamais cometeria ato tão grandiloquente quanto o suicídio, tal como encenado na tradição operística.

A estilização era, antes, a busca pelo Japão real. O pensamento de Ohtake se encontrava, enfim, com o principal tema de "Madame Butterfly", o choque entre as culturas do Ocidente e do Oriente. Na música, Puccini fundiu o padrão composicional da ópera europeia com a escala oriental, seguindo o exotismo em voga à época.

O libreto, por consequência, refletia o mesmo desejo de conciliar o inconciliável. "Un Bel dì Vedremo", por exemplo, é toda construída em discurso indireto —e dentro da língua o conflito se desvela. "Ele vai me chamar de Butterfly lá de longe", diz a gueixa, mencionando seu apelido em inglês.

Sempre num território ermo e idealizado, a mulher imagina o amor impossível, e o conflito Ocidente versus Oriente se transmuta numa clivagem interior —Cio-Cio-San versus Butterfly, duas mulheres que se alternam num único corpo. Ao cabo do terceiro ato, a impossibilidade, que se manifesta de diferentes formas, se torna insuportável, mas palpável, quando a gueixa descobre o casamento de Pinkerton com Kate.

É um arrebatamento sentimental que, no cenário figurativo, se suaviza na delicadeza das flores de cerejeira, à brisa soprando do naipe de cordas. Mas, no Japão de Ohtake, a sobriedade das superfícies planas não significa simplificação dramática, mas concentração semântica.

O vermelho de Ohtake agrega e explode o sentido, no ataque dos pratos que anuncia a ária final "Con Onor Muore" —"com honra se morre", em português. Cio-Cio-San, que tivera um filho com Pinkerton, saca um punhal e o enfia em seu ventre. Pinkerton chama sua Butterfly três vezes, mas a borboleta se desfaz em sangue, no vermelho do impossível amor.

Tomie Dançante

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.