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Filmes

Carlos Saura, respeitado por Buñuel, teve uma obra feroz contra Franco

Diretor espanhol subestimado ainda ficou célebre por destacar a música e a dança, com ritmos como o flamenco e o tango

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São Paulo

A morte, essa sombria entidade, continua levando gente das artes, e do cinema em particular. Desta vez foi Carlos Saura, cineasta espanhol que nos deixa aos 91 anos. Não era um mestre do nível de Luís Buñuel, e talvez nem fosse possível, pois estamos falando de um deus do cinema.

Nem tinha o apelo comercial de Pedro Almodóvar. Durante muitos anos, foi injustamente subestimado. Nunca um gênio, sempre um diretor interessante, com tráfego livre por diversos tipos de filmes.

A atriz Geraldine Chaplin e o diretor espanhol Carlos Saura no Festival de Cannes de 1978 - Ralph Gatti/AFP

Conhecido sobretudo por aqueles que enveredam pela música —flamenco, principalmente, mas também o fado e o tango—, Saura teve sua melhor fase ainda sob o regime franquista, quando realizou obras de forte cunho político e alegórico como "A Caça", de 1965, "O Jardim das Delícias", de 1970, "Ana e os Lobos", de 1972, "A Prima Angélica", de 1973, e "Cria Corvos", de 1976.

Saura lançou seu primeiro longa, "Los Golfos", em 1960. Compôs, logo em seguida, com Juan Antonio Bardem e Luis García Berlanga, uma trilogia de grandes diretores do cinema moderno espanhol, cujo período áureo se deu entre 1963 e 1967.

Bardem é mais conhecido por "A Morte de um Ciclista", de 1955. Berlanga tornou-se mundialmente conhecido por "O Carrasco", de 1963. Nesse mesmo ano, Saura realizou seu segundo longa, "Llanto por um Bandido", protagonizado por Francisco Rabal e com participação afetiva de Luis Buñuel.

Foi com "A Caça", seu terceiro longa, que Saura tornou-se diretor de primeira grandeza do cinema espanhol, merecendo a companhia de Bardem e Berlanga. Talvez seja mesmo seu maior filme, um conto de crueldade humana bem influenciado por Buñuel, com toques de Jean Renoir, em que a natureza perversa dos homens é desnudada sem meias tintas.

Seu amigo Buñuel, por sinal, gostava muito de "A Caça" e "A Prima Angélica", e dizia ser muito sensível aos filmes de Saura, aragonês como ele, com exceção de "Cria Corvos". Não explica por que essa distância com um dos filmes mais famosos de Saura. Podemos tentar entendê-la por uma diferença geracional: Saura nasceu em 1932, Buñuel em 1900. Mas há também o fator crítico.

Embora se apresente como uma continuidade do que veio antes, "Cria Corvos" traz também um ar de esperança talvez inédito no cinema de Saura.

Após a morte do caudilho Francisco Franco em 1975, inicia-se um processo de redemocratização da Espanha, com a volta da monarquia e a nomeação do rei Juan Carlos. Saura deixa que seu filme seja parcialmente contaminado por esses novos ares, perdendo assim parte da contundência das alegorias políticas que havia realizado anteriormente.

Seus filmes passam a enfrentar críticas mais duras, apesar da beleza poética de "Elisa, Vida Minha", de 1977, da contundência de "Olhos Vendados", de 1978, uma espécie de acerto de contas com a ditadura, e da melancolia de "Mamãe Faz Cem Anos", de 1979, com a matriarca simbolizando a Espanha, ameaçada pelos herdeiros de um sistema político incerto.

Quase todos esses filmes tiveram como protagonista, ou vivendo personagem muito importante na trama, a atriz Geraldine Chaplin, filha de Charles Chaplin, com quem Saura teve relacionamento por muitos anos e um filho em 1974, Shane Saura Chaplin. Geraldine Chaplin deu rosto às inquietações do autor, sendo de grande importância no processo criativo de seus filmes até então.

Nos anos 1980, sem Geraldine Chaplin, Saura sentiu a necessidade de se renovar. Realiza então a famosa trilogia flamenca, composta por "Bodas de Sangue", de 1981, "Carmen", de 1983, e "Amor Bruxo", de 1986, o mais belo e injustiçado dos três.

O motivo flamenco voltaria anos depois, em "Sevillanas", de 1992, "Flamenco", de 1995, e "Flamenco, Flamenco", de 2010. A pobreza dos títulos poderia sugerir uma abordagem mais direta, o que também acontece, embora seja mais um sinal de que algo se perdeu nos anos 1990.

Há um tanto de verdade nesse testemunho da decadência, mas também uma grande injustiça. Saura pode ter se acomodado em alguns filmes, principalmente dos anos 1980 em diante.

Mas em outros costumava ousar bastante, como no grandioso e ao mesmo tempo intimista "El Dorado", de 1988, uma resposta a "Aguirre, a Cólera dos Deuses", longa que desagradou Saura, realizado por Werner Herzog em 1972, ou em telefilmes como o memorável "A Noite Escura", de 1989, sobre o poeta San Juan de la Cruz e seu confinamento em Toledo.

Conforme escreveu o historiador Marvin D’Lugo, autor de um importante livro sobre os filmes de Carlos Saura até 1989, o cineasta, nos anos 1980, passou a se concentrar em temas que envolvessem rebelião social, com personagens que instintivamente desafiam as normas estabelecidas. Segundo D’Lugo, isso já fica evidente no primeiro filme oitentista, o irregular "Depressa, Depressa", de 1981, mas também em toda a trilogia flamenca, encontrando sua exacerbação em "El Dorado" e "A Noite Escura".

Estes dois últimos sugerem uma retomada da melhor forma por Saura. O que se deu a seguir, contudo, foi um retrocesso simbolizado por uma comédia simpática, mas limitada, chamada "Ay, Carmela!", de 1990. A partir daí se tornaria mais difícil não reconhecer uma certa decadência do autor, e uma franca desigualdade nos filmes posteriores.

De fato, desde a trilogia flamenca original dos anos 1980, Saura alternou projetos musicais pouco ambiciosos, embora nunca desprezíveis, com uma obra extremamente ousada, que dividiu a crítica internacional violentamente. No meio desses projetos musicais, um notável deslumbramento com a música argentina no plasticamente belo "Tango", de 1998.

Em 2001, homenageou o amigo e pai cinematográfico em "Buñuel e a Mesa do Rei Salomão", mas o resultado foi um de seus longas mais frágeis. Com seu último longa, o elogiado documentário "Las Paredes Hablan", de 2022, procura investigar em imagens as origens da arte.

Incansável, Saura sempre realizou filmes com frequência invejável, deixando que o tempo separasse os melhores dos menos afortunados.

Seu trabalho mais audacioso dos últimos 30 anos é "Goya", de 1999, no qual procura recriar o ocaso do famoso pintor espanhol por meio de imagens febris e maneiristas. A fotografia de Vittorio Storaro é tão determinante para a beleza plástica do filme, que muitas vezes ele é considerado codiretor.

No papel do pintor em seus últimos momentos de vida, um ator emblemático do cinema espanhol e do cinema de Saura: Francisco Rabal, que morreria dois anos depois nas proximidades de Bordeaux, como Goya.

E as ironias do destino não param aí. Neste dia 11 de fevereiro, Saura receberia um prêmio Goya honorário por sua carreira. Goya é conhecido como o "Oscar espanhol", o prêmio mais importante do cinema no país.

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