Entenda como Pierre Verger foi de fotógrafo-viajante a historiador emblemático

Mostra no Instituto Tomie Ohtake antecipa a Bienal de São Paulo e reconstrói trajetória do francês com peças inéditas

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Homem semi-nu sentado em construção de terra em foto preta e branca

Foto de 1936 de Pierre Verger em Alto Volta, na África Pierre Fatumbi Verger/Fundação Pierre Verger

São Paulo

Pierre Verger é celebrado por seus registros íntimos de pessoas em festejos populares e religiosos, principalmente aquelas ligadas a religiões de matrizes africanas. Mas nem sempre esse foi seu olhar.

A primeira incursão de Verger como fotógrafo-viajante, na Polinésia Francesa da década de 1930, ainda carregava resquícios de um olhar colonial, com fotografias de paisagens de uma ilha nos moldes idílicos que surrealistas reforçavam na Europa ou em que o cineasta Robert Flaherty se apoiou no longa "Moana".

Nesse momento, a distância do debate de onde ou como as fotos seriam veiculadas também era latente —um dos retratos dessa viagem, com uma mulher nua subindo numa árvore, foi parar numa revista francesa que estava mais para uma publicação como a Playboy do que para uma que queria levantar debates etnográficos.

Foi essa indiferença que o francês foi deixando cada vez mais para trás nas décadas seguintes e que parece o ter guiado rumo ao posto de um dos mais emblemáticos historiadores da cultura afro-brasileira.

Esse trajeto, que culmina na aproximação definitiva com o candomblé, é agora reconstruído na programação da Bienal de São Paulo com a exposição "Pierre Verger: Percursos e Memórias", no Instituto Tomie Ohtake, com mais de 300 itens dele, em núcleos que organizam viagens símbolicas do autor de "Fluxo e Refluxo".

Mesmo que boa parte das imagens já seja muito conhecida pelo público, documentações nunca antes expostas, como cadernos de viagem, fichas com anotações sobre festas religiosas, cartas e fac-símiles de reportagens sobre o Brasil, dão outra dimensão para a extensa obra fotográfica de Verger.

"Num primeiro momento, a questão da foto era preponderante, e havia a relação dele com as próprias agências de veiculação das imagens", diz Priscyla Gomes, curadora da instituição encarregada do projeto com Alex Baradel, da Fundação Pierre Verger. "Num segundo momento, há a dimensão dos textos que articulam essas fotografias, que parte da produção de reportagens e chega em suas pesquisas mais extensas e icônicas."

À medida que se avança nos núcleos de Benim, do Peru e, finalmente, Brasil, vemos crescer exponencialmente a preocupação do fotógrafo com a veiculação e recepção dessas imagens —e também um olhar mais singular e próximo dos retratados.

Já na Polinésia Francesa é possível identificar um depuro compositivo e um domínio de luz e de enquadramento, que demarcam as silhuetas dos corpos. Mas nas outras viagens começam a sair de cena as paisagens inabitadas, e chegam, e para ficar, as pessoas e os ambientes de festa pelas quais ficou conhecido.

Quase sempre elas são retratadas cara a cara com o fotógrafo, que poderia manter um olhar mais despercebido com sua Rolleiflex na altura do peito, mas parece perseguir o olhar direto daqueles sujeitos.

Da viagem à África surge o documento mais antigo conhecido de Verger, com impressões do fotógrafo sobre Timbuktu, no centro de Mali. "Fui passear a pé pela cidade, ruazinhas de areia com paredes cinzentas, gente, o mercado sujo, tudo isso visto através de uma espécie de bruma que invadiu minha cabeça —a impressão de ter dificuldade em pronunciar as palavras e juntar meus pensamentos", escreveu Verger na ocasião.

Homem com o rosto coberto em cima de camelo
Kidal, no Mali, em foto de 1935 de Pierre Fatumbi Verger - Pierre Fatumbi Verger/Fundação Pierre Verger

São descrições de um homem que quis se afastar de uma vida burguesa depois da morte da mãe e sair fotografando por aí e que desenvolve registros distantes de uma pretensão etnográfica. Esses documentos da exposição, aliás, mostram que Verger só adotou a descrição de etnógrafo porque não pegava bem viajar como fotógrafo no período pós-Guerra, conta Alex Baradel.

Priscyla Gomes lembra que, com frequência, se levanta a pergunta de como um homem que não concluiu o segundo grau escreveu uma obra tão icônica como "Fluxo e Refluxo" —e, de novo, os documentos ajudam a montar esse quebra-cabeça.

As cartas que ele trocava com nomes como Roger Bastide, Alfred Métraux e, no Brasil, Jorge Amado, Dorival Caymmi e Lina Bo Bardi, resgatam uma rede de trocas que funcionou como uma formação epistolar e paralela à academia para o francês.

Se na África ele começa a desenvolver uma linguagem e uma aproximação com temas que desembocariam em "Orixás", foi em suas viagens pela América à sombra dos Andes, no Peru e na Bolívia, que Verger permanece mais tempo —prática que foi definitiva para o tipo de trabalho que ele desenvolveu no Brasil.

"Nesse momento, a fortuna escrita também é distinta", afirma a curadora. "Há aqui uma das primeiras publicações em que ele realmente se coloca contrário à veiculação das imagens dele diante do texto proposto, já começa a marcar essa relação mais íntima com os temas."

É já atravessado por essa perspectiva mais complexa e posicionada do seu trabalho que Pierre Verger vem fotografar o Brasil —e a mostra no Tomie Ohtake traz um recorte de retratos feitos principalmente em Pernambuco e na Bahia, e que foram publicados na revista O Cruzeiro.

Em diários com letras diminutas, apresentados na exposição, ele registrou suas idas à feira de São Joaquim, almoços com figuras como o pintor argentino Carybé, e deixou apontamentos minuciosos do diálogo que construiu com personalidades brasileiras. Foi aquilo que o alçou a esse lugar de porta-voz de culturas de seu país de adoção.

Os curadores não encontraram nessa vasta seleção de cartas e cadernos declarações sobre a homossexualidade de Pierre Verger, que passou a ser discutida após sua morte, no final da década de 1990. Em todo caso, a centralidade da figura masculina na obra do francês é nítida na seleção das fotografias desde os retratos do pintor Eugène Huni que abrem o primeiro núcleo da mostra com a viagem à Polinésia Francesa.

Já a aproximação com o candomblé, e principalmente seu renascimento como babalaô que o fez Fatumbi, marcou um movimento paradoxal —o distanciamento da fotografia que o consagrou e o mergulhou na pesquisa teórica. A maioria das fotografias que fez de terreiros foram antes de ser assimilado como parte dessa comunidade, e ele estabelece um compromisso de como retratar tudo isso que não tem volta em suas imagens.

"Verger é recebido por essa comunidade quando já havia uma perseguição absurda às religiões de matrizes africanas. Havia um gesto da própria comunidade de tentar expandir o seu alcance e diminuir essa perseguição", afirma Gomes.

Nesses trabalhos que Verger faz no Brasil, ressalta a curadora, não há só o olhar que ele tinha sobre as religiões africanas, mas também uma negociação do que as comunidades de que ele se aproximou escolheram mostrar e acolher com essas obras.

Pierre Verger: Percursos e Memórias

  • Quando De 13/8 a 21/11. De ter. a dom.: 12h às 17h
  • Onde Instituto Tomie Ohtake - av. Faria Lima, 201, Pinheiros, SP
  • Preço Gratuito
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