Só 5,5% dos monumentos de São Paulo retratam figuras negras, aponta novo estudo

Com maioria de homenagens a homens brancos, 23% destacam personalidades notórias da escravidão ou da ditadura militar

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São Paulo

A falta de diversidade racial não se faz presente apenas em filmes, novelas e revistas. Ela também está exposta nas ruas e praças de São Paulo, capital na qual os monumentos públicos representam em sua maioria personalidades brancas e masculinas.

Das 210 obras em homenagem a pessoas da capital paulista, 74% relembram pessoas brancas e apenas 5,5% retratam figuras negras, cenário que pouco reflete a composição racial de São Paulo. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, pretos e pardos são 37% da população paulistana.

Monumento de Bandeirante
Monumento a Borba Gato, obra do escultor Júlio Guerra, instalado na região de Santo Amaro - Douglas Nascimento / São Paulo Antiga

Os dados divulgados nesta quinta-feira são do Instituto Pólis, organização sem fins lucrativos.

"Uma sociedade que não enxerga a importância de negros, indígenas e mulheres não vai colocar esses grupos em lugar de destaque nas ruas da cidade", diz Cássia Caneco, coordenadora de projetos do instituto.

Ela afirma que São Paulo escolheu exaltar a história de homens brancos para se associar à ideia de poder, inovação e pioneirismo, características que foram ligadas aos europeus em razão do racismo. "A cidade decidiu contar a própria história de um ponto de vista masculino, branco e, sobretudo, opressor."

De acordo com o levantamento, 23% dos monumentos que retratam figuras humanas exaltam nomes que oprimiram grupos marginalizados, seja na escravidão, seja na ditadura militar.

Um exemplo disso é a controversa estátua de Borba Gato, instalada em Santo Amaro, na zona sul da cidade, na década de 1960. Em 2021, a peça chegou a ser incendiada porque o bandeirante é associado à escravização de indígenas, grupo que é representado em apenas 2% das obras públicas de São Paulo.

"São obras que referendam um passado de violência e continuam oprimindo povos negros e indígenas, porque são imagens que engrandecem os algozes de seus antepassados", diz Caneco.

Ao afirmar que as obras engrandecem figuras controversas, a especialista não está usando uma figura de linguagem. Segundo a pesquisa, as obras que representam brancos são de fato maiores.

Figuras que retratam negros têm em média 2,2 metros e indígenas medem, em média, 2,8 metros –são valores 33% e 15% menores do que os de monumentos brancos, que têm em média 3,3 metros.

Monumentos femininos são ainda mais diminutos, com 1,8 metro, enquanto aqueles que homenageiam figuras históricas controversas têm 5,3 metros.

Caneco diz que as grandes proporções ajudam a atribuir uma imagem heroica a personalidades que exerceram poder no passado. "É impossível o monumento às Bandeiras passar despercebido. Ele ocupa um espaço de memória dentro da gente. Já as proporções pequenas de monumentos negros são uma forma de apequenar a contribuição dessas pessoas para o Brasil."

Em nota, a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo diz que, em 2021 e 2022, foram inauguradas cinco esculturas em homenagem a personalidades negras paulistanas elaboradas por artistas negros.

"O projeto, proposto pelo Departamento de Patrimônio Histórico, o DPH, foi desenvolvido justamente com o objetivo de contribuir para uma maior diversidade e representatividade nos monumentos existentes na capital, de modo a aprimorar o acervo cultural municipal", diz a pasta.

O debate em torno de monumentos históricos ganhou força na esteira dos protestos contra a morte de George Floyd –homem negro morto pela polícia em 2020, nos Estados Unidos.

À época, manifestantes vandalizaram estátuas de escravocratas em estados americanos como Massachusetts, Virgínia e Connecticut. Monumentos foram depredados também na Bélgica, no Reino Unido e na Groenlândia.

Já em 2021, o governo da Virgínia decidiu remover a estátua do general Robert E. Lee, militar confederado que defendia a manutenção da escravidão nos Estados Unidos.

Caneco, a pesquisadora, se diz favorável à retirada dessas obras de espaços públicos para instalar as peças em museus. Ela diz que, nessas instituições, os trabalhos poderiam ser contextualizados. "É colocar placas que expliquem aquela pessoa, mas também acrescentar outras perspectivas sobre ela. A história do Borba Gato não é mentira, mas não é a única verdade sobre ele."

Professora do departamento de história da Universidade Howard, nos Estados Unidos, a historiadora Ana Lúcia Araújo também defende a remoção de obras que fazem referência a escravocratas.

Segundo a especialista, essas obras poderiam se postas em "cemitérios de estátuas", a exemplo do que fizeram os países da antiga União Soviética. Quando o bloco se dissolveu, em 1991, as obras que representavam líderes soviéticos foram retiradas das ruas e instaladas em parques.

"Monumentos não são eternos, assim como não o são prédios e viadutos. Eles devem ser removidos quando não respondem à necessidade da população." No entanto, alguns especialistas afirmam que a remoção de obras públicas pode promover um apagamento histórico.

A pesquisadora discorda dessa visão. De acordo com ela, a remoção não compromete o registro histórico, já que ele segue presente em jornais, livros e fotografias.

"Monumento não é história. É a representação de certos grupos de pessoas que viveram num determinado momento. Assim como eles são colocados, eles podem ser retirados", diz ela, acrescentando ser importante também aumentar a diversidade racial das obras públicas.

"Os monumentos são instrumentos de poder. Quando mulheres, negros e indígenas não se veem representados, eles sofrem uma segunda opressão, desta vez de natureza simbólica", diz a pesquisadora.

Chefe técnico de acervo e curadoria do Museu do Ipiranga, Paulo César Garcez Marins pondera que a retirada ou não de monumentos deve acontecer de forma democrática, ouvindo o conjunto da sociedade.

"Mas remover monumentos implica em posicionar em outro lugar e os problemas e discussões que eles geram continuarão presentes", diz o historiador. "O risco maior está, a meu ver, em não abordar eles criticamente nas novas localizações caso eles sejam removidos."

O especialista, porém, é contra a destruição das obras, uma vez que há normas internacionais que preservam bens culturais. "Podemos realocar, mas não destruir os monumentos. Devemos preservar o que nos desagrada para que continue havendo debates e discussões dentro da sociedade."

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