Adriana Calcanhotto empunha a lira e faz de seu novo disco um balé branco

Cantora e compositora lança 'Errante', seu 13º álbum, pensando o nomadismo de seu ofício, e prepara tributo a Gal Costa

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A cantora e compositora Adriana Calcanhotto em cartaz de divulgação de 'Errante', seu novo disco

A cantora e compositora Adriana Calcanhotto em cartaz de divulgação de 'Errante', seu novo disco Leo Aversa

São Paulo

Tudo é branco. A roupa larga, os lençóis tremulando no varal, a louça inteira, alheia ao vento. Adriana Calcanhotto, de 57 anos, erra pelo jardim até encontrar o interior da casa. No clipe de "Horário de Verão", que integra "Errante", seu 13º disco, a ser lançado nesta sexta-feira, dia 31, a cantora e compositora fuma cinicamente um cigarro e passa um café, só, na cozinha vazia.

A cantora e compositora Adriana Calcanhotto em cartaz de divulgação de 'Errante', seu novo disco
A cantora e compositora Adriana Calcanhotto em cartaz de divulgação de 'Errante', seu novo disco - Leo Aversa

"Pudesse ser assim/ Você gostar de mim/ Houvesse modo de fazer o amor obedecer", diz o poema. O amor quimérico se arrasta no tempo-espaço, encontrando a forma de um samba-canção. No som, melodia derramada. No verbo, o modo subjuntivo, indicando fantasia, desejo irrealizado.

Mas não as noites brancas. O dia ensolarado, pálido. Na arte lírica, coube ao balé romântico consagrar a união de todas as luzes como procedimento estético. A linguagem balética denominava ato branco a seção da coreografia, em que sílfides, ninfas e dríades diluíam a realidade num ambiente etéreo e idealizado.

Em "Les Sylphides", de 1909, o coreógrafo russo Michel Fokine apropriou-se da tonalidade para elevar a brancura à abstração. Pela visualidade, a interpretação do que se passava em cena tornava-se cada vez mais livre. Do mesmo modo, Adriana opera em "Horário de Verão" uma imagem indeterminada, ocasionada pela pretensa ausência semântica da cor branca.

"É uma ligação com a folha branca ou a tela branca, que transmite as possibilidades de uma linguagem aberta", diz ela, filha de bailarina, em entrevista por videoconferência. "A ópera também tem isso que me fascina —os espetáculos de música como filmes de arte, que é o que faz a Maria Bethânia. A luz conversa com o figurino, assim como a letra, a música e a marcação."

Em comum às três manifestações artísticas, está o lirismo, tão caro à poesia. No clipe do xote "Pra lhe Dizer", o riff matador do violonista Davi Moraes anuncia a canção como um ringtone, capaz de tirar o sono do ouvinte.

Com a mesma estética vaporosa, a roupa larga de Adriana confere um sentimento de lassidão ao eu lírico, consciente de que o ócio é a morada da poesia. Na instância discursiva, a expressão "pra lhe dizer" se filia à poética nordestina, determinada pela oralidade na escrita e no cancioneiro regional. "Pra lhe dizer que eu vou trocar de sonho/ Eu vou mudar de você."

À luz da sintaxe, a autora irrompe o sentido do segundo verso, propondo uma relação ambígua entre os elementos do complemento verbal. O pronome "você" indetermina o nome do ser amado, onde seria natural a presença de um termo designando lugar.

As onze faixas de "Errante" versam sobre a vida de uma artista que anda pelo mundo em turnês "divertindo gente/ chorando ao telefone", como nos versos do hit "Esquadros", do álbum "Senhas", de 1992. Assim, os 38 minutos do disco são o resultado de uma elaboração que acompanhou a compositora por toda a carreira.

Além de Moraes, que também toca guitarra, a banda do disco é formada por Domenico Lancellotti na bateria, no piano e na lira, Jorge Continentino, Marlon Sette e Diogo Gomes nos sopros, e Alberto Continentino no contrabaixo, que não se restringe à função harmônica e pontua sua gravidade às melodias.

Adriana reflete, assim, sobre o próprio ofício de trovadora. A rigor, ela conta que pouco mudou desde a Idade Média, quando os poetas andavam pelas cidades, entoando seus poemas ao som do alaúde.

A turnê de "Errante" começa em maio, em Coimbra, Portugal, desembarcando no Brasil dois meses depois, em Porto Alegre, onde Adriana nasceu. Desde 2015, ela é Embaixadora da Universidade de Coimbra, difundindo a língua portuguesa pelo mundo.

Em 2018 e 2019, Adriana deu aulas de composição na universidade. Entre os portugueses, talvez seja ainda mais compreendida. Por lá, sente-se livre para interpretar poemas musicados da poeta Fiama Hasse Pais Brandão ou entoar, em provençal, "Chanson do'ill Mot Son Plan e Prim" —ou "Canção de Amor Cantar Eu Vim", na tradução de Augusto de Campos—, do trovador do século 13 Arnaut Daniel.

"Eles têm uma ligação com a poesia um pouco diferente. A pessoa de Portugal é Camões", diz ela. "Nós consumimos mais poesia pela música, e eu descobri Portugal pelos livros, não os de história, mas os de poesia."

Se erra pelo mundo fazendo da casa o corpo, como diz em "Nômade", Adriana leva a vida de uma erudita. Gosta de estar em casa, com os gatos e os livros. Ela se divide entre a ourivesaria de canções, as ilustrações, a organização de antologias de poemas e até o jornalismo. Em 2014, foi diretora de redação do Público, de Portugal, preparando a edição de aniversário do jornal.

Entre a errância e o ócio, o disco é também um autorretrato da compositora, que usou fotografias 3x4 de antigos passaportes para ilustrar sua nova obra. Sobretudo, as canções "Prova dos Nove" e "Quem te Disse?" tematizam a recém-descoberta de sua ascendência judaica, de origem sefaradi, graças ao trabalho de genealogia de uma amiga da artista.

"Era algo que sempre intuí, porque me identificava com a comunidade judaica, por esse lado do amor aos livros, por gostar muito de estudar", conta. "Em algumas situações, me sentia um peixe fora d’água, agora, não. Tudo faz sentido."

"E em tudo o que faço sou não mais do que impostora (...)/ Parte do sangue judeu/ Um nome que não é só meu/ E a crença na alegria como prova dos nove". Ao se assumir como impostora, o eu lírico adere à autoderrisão do humor judaico e, depois, à utopia brasileira, a promessa de felicidade, cunhada pelo modernismo.

"Prova dos Nove" apresenta a identidade sonora do disco. Adriana alia a estridência dos metais às batidas eletrônicas da caixa de ritmos, que desconstrói o ritmo do funk.

"Esse trabalho tem traços do jazz, o que não tem a ver com a harmonização, mas com a liberdade de tocar sem combinar coisas antes, nos escutamos e vamos gravando", diz.

O humor irônico retorna em "Quem te Disse?", uma celebração de todas as possibilidades do amor. "Novinha, quem disse que o amor vê diferenças/(...) Afrodite, acredite/ Rainha, dispa-se das suas penas/ Tu me ensina a fazer renda ai ai ai ui."

Depois de empregar o termo "novinha", vocativo que compõe o léxico do funk, a autora evoca a deusa do amor e da beleza, da mitologia grega. Ela une, deste modo, a cultura popular à erudita, tendo encontrado no rádio o veículo de massa ideal para transmitir a sua poética.

"O meu ideal é fazer canções em que, na primeira leitura, você a compreende, mas, se você tiver os códigos, pode alcançar uma segunda camada, depois a terceira", afirma Adriana. "Eu me orgulho de olhar para a minha plateia e não conseguir dizer ‘é tal tipo de gente’. É gente, de todas as origens."

Finalmente, em "tu me ensina a fazer renda ai ai ai ui", o eu lírico assume uma postura lúdica, interrompendo o segundo verso, com a expressão "tu me ensina a fazê renda/ Que eu te ensino a namorá".

A irreverência, diz a cantora, tem origem na Jovem Guarda, sobretudo na admiração que teve por Erasmo Carlos, morto em novembro do ano passado. Com ele, Adriana gravou sucessos, como "Imoral, Ilegal ou Engorda" e "Do Fundo do meu Coração". "Sempre admirei muito o jeito do Erasmo cantar. Ele também tinha o canto sem ornamento, rente à fala para entregar o texto", afirma.

Dias antes, a morte de Gal Costa já inundara a artista de tristeza. Embora seja mais ligada a Bethânia, a quem envia todas as suas composições, Adriana e Gal compartilhavam uma admiração mútua. Gal gravou duas canções suas, em "Aquele Frevo Axé", de 1998, e "Livre do Amor", de "A Pele do Futuro", 20 anos depois.

Agora, Adriana subirá ao palco em um tributo a Gal, intitulado "Coisas Sagradas Permanecem", que estreia no Rio de Janeiro e chega a São Paulo em 11 de maio. "Devo muito a ela também a minha construção do repertório, a paixão pelas canções e como se apropriar delas", diz.

"Errante" é um disco que sintetiza os procedimentos composicionais de Adriana. No samba de roda "Larga Tudo" ou em "Era Isso O Amor?", ouve-se o som de seu violão, uma obra inventada.

O ritmo é o fundamento estruturante de sua música. Por isso, o violão, afinado um tom abaixo do normal, repete até o paroxismo a batida do hip hop. Seu violão é um código aberto, tal como a indeterminação da cor branca.

"I’m formless", diz "Lovely" —eu não tenho forma, em português. Repetindo a mesma batida, Adriana encontra variações rítmicas, dialogando com o samba ou o rock e alcançando o hibridismo da música brasileira. "Com três acordes, as pessoas podem tocar todo o meu repertório", diz ela, influenciada pelos minimalistas Steve Reich e Philip Glass.

Adriana faz canções subtraindo sílabas e acordes. É ourives de uma poética econômica, que resulta numa interpretação contida, própria da tradição bossanovista. Em cena, porém, a trovadora encara o espectador com seus olhos de onda —ora azuis, ora verdes— sendo —errando no tempo— sílfide do terceiro milênio.

Errante

  • Quando Disponível nas plataformas digitais nesta sexta-feira (31)
  • Autor Adriana Calcanhotto
  • Gravadora BMG
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