Augusto de Campos lê de Maiakóvski a poesia chinesa em seu livro-CD 'Entredados'

Poeta concretista lança projeto com o filho, Cid Campos, que contém encontro com Décio Pignatari e Haroldo de Campos

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Rio de Janeiro

Há 25 anos, a récita de "Um Lance de Dados", de Stéphane Mallarmé, surgiu de improviso no programa da rádio Cultura de São Paulo com os concretistas Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos. Munido de sua tradução de Mallarmé, Haroldo propôs a leitura conjunta do poema de complexa estrutura verbal, sonora e visual.

O registro do encontro abre o livro-CD "Entredados", do selo Laranja Original, agora lançado por Augusto e seu filho, Cid Campos, autor das ambientações musicais no MC2 Studio. Na obra, o concretista lê textos poéticos de Maiakóvski, Lewis Carroll, James Joyce, Gregório de Mattos e de Ezra Pound, recriador da antologia clássica chinesa compilada por Confúcio.

Os impasses da vocalização de poemas concretos são desmontados pela habilidade de Augusto de Campos de encontrar correspondências orais às criações visuais. No disco "Poesia É Risco", de 1995, a leitura de seu poema "Cidade", de 1963, representou uma proeza ao lidar com a subversão da sintaxe.

O poeta Augusto de Campos durante abertura da mostra 'O Pulsar', na galeria Luciana Brito, em São Paulo - Greg Salibian/Folhapress

"Cada poema pede uma estratégia de leitura específica. ‘Cidade’, assintático, com todos os fragmentos desembocando em ‘vora’, e a mesma terminação transposta uma única vez para o final, me sugeriu a leitura veloz, de um só fôlego", conta Augusto de Campos.

"No caso de ‘Um Lance de Dados’, as ‘subdivisões prismáticas’ das frases favoreciam uma leitura a várias vozes, e acho que foi o que pensou Haroldo ao propor a transleitura do trio, como fizéramos anteriormente com trechos do ‘Rosa d'Amigos’ do Décio, no filme da Cristina Fonseca, e de ‘O Escaravelho de Ouro’, no CD 'Ouvindo Oswald', que organizei com Cid e estamos tentando reeditar pelo Sesc."

Nos primeiros textos do movimento concretista brasileiro, Mallarmé aparece como ponto de partida da poesia moderna em sua resposta à crise do verso. Em 1955, na revista Forum, Augusto de Campos conferia centralidade à experiência de "Um Lance de Dados", que voltaria a ser lembrado no manifesto do grupo Noigandres, "Plano-Piloto para Poesia Concreta", de 1958.

O trio reconhecia em Mallarmé o "primeiro salto qualitativo" da poesia visual, com o uso de espaços brancos e recursos tipográficos, redefinindo a relação do leitor com a estrutura do poema nas páginas de um livro.

Na rádio paulista, a leitura de "Um Lance de Dados" ganhou uma música de fundo do compositor francês Pierre Boulez. Em substituição a esse acompanhamento de circunstância, Cid Campos criou interferências sonoras condizentes com os sentidos estilhaçados pelos versos experimentais. Na elocução dos concretos, os espaços em branco são entendidos como silêncios.

"Há uma variedade e sofisticação tão grande no que Augusto faz com a voz nessa coletânea, que as palavras ‘leitura’ e ‘oralização’ me parecem fracas. É um verdadeiro ‘design vocal’ de poemas", diz o poeta visual André Vallias, que assina o projeto gráfico do livro-CD. Aos olhos de Campos, o compositor Caetano Veloso se tornou um dos grandes vocalizadores de poemas concretos nas gravações radicais de "Dias Dias Dias" e "O Pulsar", incluído no show de "Meu Coco", o mais recente álbum do tropicalista.

O músico Cid Campos, na abertura da exposição ''O Pulsar'', do poeta Augusto de Campos, na galeria de Luciana Brito, em São Paulo
O músico Cid Campos, na abertura da exposição ''O Pulsar'', do poeta Augusto de Campos, na galeria de Luciana Brito, em São Paulo - Greg Salibian/Folhapress

"Entredados" celebra ainda os 70 anos da revista Noigandres. Criada em 1952 por Décio Pignatari e os irmãos Campos, ela incorporou, em sua existência de cinco números, os cariocas Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald. Na língua occitana do trovador Arnaut Daniel, a palavra "noigandres" significava, segundo o lexicógrafo Emil Levy, "olor que afugenta o tédio".

Aos 91 anos, Augusto de Campos vê um cenário adverso para a poesia de invenção na vida dos leitores contemporâneos. "De modo geral, ainda que eu me devesse sentir animado com os 30 mil leitores que me arranjou o Álvaro Dutra, no link do Instagram [@poetamenos] que ele inventou para mim, sou pessimista quanto ao destino da poesia de alto repertório. É coisa de ‘ghetto’. Comunicação interguêtica. Mais passado que presente", afirma o poeta.

"O Décio, nosso Oswald magro, dizia que todo mundo gosta de poesia mas ninguém compra livro de poesia. E que a poesia acabou. Os jornais, antes acolhedores, já a cancelaram há muito tempo, substituindo por banalidades cinematográficas e divertimentos chamativos. Sobrevive na vertente cancionista, de jargão cotidiano, onde, por exceção, pode ganhar altitude estética, mas onde artesania vocabular não é necessária, e você pode chegar a excelências com um simples ‘amor em vão’. Mesmo aí o nível mais corriqueiro é sempre o mais bem-sucedido."

Na coletânea de "Entredados", soando como um recado ao Brasil do presente, Campos lê o satírico baiano Gregório de Mattos. "Querem-me aqui todos mal,/ mas eu quero mal a todos,/ Eles e eu por nossos modos/ nos pagamos tal por qual./ E querendo eu mal a quantos/ me têm ódio tão veemente,/ o meu ódio é mais valente, /Pois sou só e eles são tantos."

O concretista vincula a miséria intelectual à mediocridade política do país. "Na TV se normatiza agora um péssimo português, onde o ‘êle’ pompeia em lugar do ‘o’ e do ‘-lo’. Os letrados que, por ação ou omissão, ajudaram a eleger Bolsonaro, e ameaçam ainda apoiá-lo, mostram a que vazio chegou a cultura brasileira que o capitão não se cansa de pisotear. Tempo de pobreza para a poesia. O livro-CD ‘Entredados’ é uma recusa e um teste. Veremos no que vai dar."

Neste ano, Campos acompanhou os debates sobre o centenário da Semana de Arte Moderna e não identificou leituras originais sobre o legado do poeta Oswald de Andrade. "When poets go, grammarians arrive", ou, quando os poetas partem, os gramáticos chegam, ele ironiza.

"Todos esses calhamaços mais ou menos acadêmicos que nos despejam cem anos após a semana pouco acrescentam à discussão essencial do modernismo, que já foi feita, para valer, há mais de meio século. Por mais que queiram nos escamotear, salvamos Oswald do esquecimento e o proclamamos como a voz mais radical e instigante do modernismo, e colocamos Mário e o 'Macunaíma' no devido lugar, no momento em que era preciso fazê-lo, e antes dos outros, para que a arte brasileira pudesse encontrar o caminho da evolução."

O poeta destaca um só livro na onda de lançamentos sobre o modernismo brasileiro. "O ecletismo histórico das publicações centenárias empasta e emplastra tudo na conhecida ‘geleia geral’ brasileira. Salva-se um pequeno grande livro, ‘Cem Anos da Semana de Arte Moderna: O Gabinete Paulista e a Conjuração das Vanguardas’ [editora Perspectiva], de Leda Tenório", diz Campos. "O único que interpreta o modernismo e suas consequências sob um viés prospectivo e não retroativo e retrocessivo."

Entredados

  • Preço R$ 50 (80 págs.)
  • Autoria Augusto de Campos e Cid Campos
  • Gravadora MC2 Studio
  • Editora Laranja Original
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