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Como Lydia Tár, de Cate Blanchett, é diferente dos mais novos regentes

Filme, que concorre ao Oscar, quebra estereótipos ao mostrar que é possível dispensar ranços arcaicos sem perder potência

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Sidney Molina

É violonista, professor e crítico musical​​. Autor dos livros "Mahler em Schoenberg" e "Música Clássica Brasileira Hoje" e fundador do quarteto de violões Quaternaglia

São Paulo

Numa cena famosa de "Ensaio de Orquestra", rodado em 1979 por Federico Fellini, os músicos que se rebelam contra a autoridade do regente tentam substituir o condutor por um metrônomo gigante, como se a função do maestro fosse apenas a marcação precisa do andamento musical.

Cate Blanchett em cena do filme "Tár", de Todd Field
Cate Blanchett em cena do filme 'Tár', de Todd Field - Divulgação

Em "Tár", que concorre ao Oscar em quatro categorias —melhor filme, direção, roteiro original para Todd Field e atriz para Cate Blanchett–, a regente Lydia Tár, encarnada por Blanchett em memorável atuação, aceita que o controle do tempo é, de fato, parte central da interpretação musical.

Com isso, cai por terra o estereótipo vigente no cinema —e fora dele— do regente caras e bocas, isto é, a associação quase direta entre os gestos exagerados do condutor carismático e o que seria uma performance musicalmente forte.

Apenas tal fato –respeito profundo à musicalidade intrínseca à música– já torna o filme de Field especial. A despeito de suas duas horas e 38 minutos de duração, o diretor controla bem o metrônomo cinematográfico. O tempo é o de uma lenta e longa sinfonia romântica, dividida em movimentos contrastantes e repleta de ironias, citações, sonhos e elipses.

O roteiro instala cuidadosamente a realidade ficcional sobre história e geografia reais. Cenas importantes do filme ocorrem em centros musicais de referência, como a Juilliard School de Nova York e a Philharmonie de Berlim, teatro desenhado pelo arquiteto Hans Scharoun na década de 1960 para ser a sede da Orquestra Filarmônica de Berlim.

A personagem de Blanchett é apresentada como a primeira mulher a assumir o posto de regente titular da orquestra alemã, dona de uma proeminência midiática no cenário internacional que se tornou incontestável a partir do pós-Segunda Guerra Mundial.

Para além de sua qualidade, longevidade e consistência –há outras orquestras tão boas e ainda mais tradicionais, como a de Leipzig, também na Alemanha–, a principal razão do sucesso de Berlim foi a constituição de uma imensa discografia durante o longo período em que o grupo foi comandado pelo maestro austríaco Herbert von Karajan, de 1954 a 1989.

É estimado que Karajan tenha vendido mais de 200 milhões de discos, o que situa a Filarmônica de Berlim confortavelmente ao lado de bandas pop como os Rolling Stones.

No filme, o recurso à "Quinta Sinfonia" de Gustav Mahler como leitmotiv musical poderia parecer uma solução um tanto fácil. Afinal, se praticamente qualquer outra sinfonia do compositor poderia encaixar na narrativa, por que escolher justamente o tema de "Morte em Veneza", filme de 1971 de Luchino Visconti?

Mas até isso é, em "Tár", explicitamente mencionado e transformado em ironia. O filme, inclusive, também oferece bastante espaço ao "Concerto para Violoncelo", composto em 1919 pelo britânico Edward Elgar.

A construção da personagem por Blanchett é minuciosa. Ela é convincente como regente, atividade que demanda altíssimo grau de controle corporal e auditivo. Mais espetacular ainda é sua atuação ao piano na masterclass de regência na Juilliard School, longuíssima e brilhante cena filmada sem nenhum corte, onde ela mesma toca trechos do prelúdio de número um de "O Cravo Bem Temperado", de Johann Sebastian Bach, e na qual emula estilos interpretativos de diferentes pianistas.

Ela é igualmente categórica ao criar uma componente central da personagem. Sua arrogância, ponto de partida de uma ilimitada autoconfiança, por sua vez, abre espaço para o eticamente injustificável abuso de poder.

O filme mostra como comportamentos inadequados dos poderosos podem destruir carreiras e vidas, e Lydia Tár, aparentemente tão moderna, fashion e conectada, carrega perigosamente um velho mundo dentro de si. Não precisa ser assim.

A própria história recente da Filarmônica de Berlim mostra um gradual afastamento desse estereótipo. Após o reinado à moda antiga de Karajan, veio o italiano Claudio Abbado, de personalidade cooperativa —como foi possível constatar durante os ensaios da orquestra no Theatro Municipal de São Paulo no ano de 2000—, ou da relação humana, sensível e delicada com músicos e público do atual titular, o russo-austríaco Kirill Petrenko —conforme este crítico pôde presenciar em janeiro passado na própria sede da Filarmônica de Berlim.

Também no Brasil maestros têm mostrado que é possível prescindir de ranços arcaicos sem perder potência sonora, beleza das linhas graves e precisão rítmica. Para isso, basta mencionar o trabalho de duas regentes de carne e osso igualmente citadas no filme de Field —Marin Alsop, que foi titular da Osesp por oito temporadas, e Nathalie Stutzmann, artista convidada, residente e associada da orquestra paulista em diversos momentos na década passada.

"Música é movimento, é fluxo", diz Leonard Bernstein em um vídeo antigo que aparece no final de "Tár". Fellini termina o seu "Ensaio de Orquestra" com um categórico "da capo", ou "do começo", literalmente "da cabeça", em italiano. Seria ainda possível a Lydia Tár recomeçar em outros termos?

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