Descrição de chapéu
Livros América Latina

Pacto sombrio entre incels guia a narrativa febril de 'Páradais'

Mexicana Fernanda Melchor se firma na literatura sobre violência social em romance que peca pela obviedade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ligia Gonçalves Diniz

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais

Páradais

  • Preço R$ 59 (144 págs.)
  • Autoria Fernanda Melchor
  • Editora Mundaréu
  • Tradução Heloisa Jahn

Sob o efeito de muitos copos de cerveja barata e uísque roubado, o adolescente Polo consegue finalmente adormecer, estendido na esteira áspera sobre o chão da sala —a perturbação do álcool transformava o chão duro "no suave vaivém do rio cantando por baixo de seu corpo, na torrente sempre cambiante, sempre desmemoriada das águas escuras descendo para o mar".

A bonita passagem de "Páradais", livro indicado ao prêmio Booker Internacional, remete ao limite em que vive seu protagonista —um rio separa a pequena casa onde mora, com a mãe embrutecida e a prima provocadora, do condomínio Paradise, no qual trabalha como jardineiro. Separa ainda o presente sem horizonte dos trabalhadores pobres da vida confortável da elite moradora do condomínio de luxo, na costa mexicana.

mulher com camiseta preta e luz realçando os olhos
A escritora Fernanda Melchor, uma das autoras mais celebradas da nova literatura latino-americana - Zoe Noble/The New York Times

O rio que embala Polo o separa, também, de seu parceiro de bebedeiras Franco Andrade. Loiro e gordo, de família rica mas negligente, ele é sexualmente obcecado por sua vizinha, a senhora Marián, epítome da perua gostosona, que desfila o corpo bronzeado, o orgulhoso marido e os filhos mimados pelo conjunto residencial.

É às margens das águas salobras desse fio limítrofe que Polo e Franco se conhecem e firmam, a despeito do desprezo mútuo, um pacto sombrio para escapar de seus respectivos estados de impotência. Desde a primeira linha do romance de Fernanda Melchor, sabemos que o plano não dará certo.

A mexicana, autora do celebrado "Temporada de Furacões", firma com "Páradais" seu nome na tradição da literatura que presentifica a violência social e suas consequências. Melchor traz, porém, um "twist" fundamental, ao conduzir o leitor ao interior da consciência de seus atores, o que, no caso de seu segundo romance, significa sobretudo experimentar de dentro a força da misoginia mais profundamente enraizada, posta em ação pela frustração e o rancor.

A aversão às mulheres em "Páradais" é selvagem, mas democrática. Viciado em pornografia, o rechonchudo Franco sabe que só pode ter relações com a senhora Marián à força. Brutalizado pela mãe e seduzido pela prima "bem cachorra", Polo —"escuro" e "feio como uma bofetada na cara"— não consegue confrontar nenhuma delas.

Da cabeça do jardineiro, que acompanhamos junto a um pouco confiável narrador, brotam expressões que indicam a intensidade do ressentimento —a vagina de suas algozes, por exemplo, é descrita como "um buraco escuro, visguento, lodoso, fedendo a pântano podre".

Melchor brilha na linguagem inflamada, no ritmo febril e nas imagens potentes. A tradução de Heloisa Jahn é um triunfo à parte, fazendo a gente duvidar de o livro não ter sido escrito originalmente em português —um feito raro, e ainda mais admirável dada a agressividade da dicção de "Páradais".

Apesar da força da narração, contudo, a história incomoda pela obviedade, que por vezes resvala no determinismo.

O gordo Franco é o protótipo do chamado incel, o sujeito que acha que a culpa de seu celibato recai sobre as mulheres; o marginalizado Polo sonha com a entrada no crime organizado como forma de escapar à exploração capitalista; ambos sofrem com a ausência de figuras masculinas confiáveis; o álcool é o catalisador de ímpetos criminosos. Percebemos logo que o final infeliz desses personagens está traçado desde antes de o romance ter início.

Não se trata de exigir que a literatura de ficção corrija os efeitos da atroz desigualdade social latino-americana, mas a opção por certo hiper-realismo (tão familiar a nós desde autores como Rubem Fonseca) repete, ao estetizar em excesso o hediondo, um fatalismo um tanto alienante.

Em uma metáfora suicida, é o próprio Polo quem, desde o outro lado do rio, vai ao paraíso para arrancar com gosto, a golpes de facão, as "matas e lianas e heras de talos lenhosos que de repente emergiam, verdes e farfalhantes", vindas do matagal para romper as barreiras do elegante gramado inglês do "Páradais".

Quando é o excluído quem cuida de preservar o paraíso, e ele o faz à custa de si mesmo, a tragédia parece ser anunciada como necessária à inocência e à beleza.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.