Descrição de chapéu Artes Cênicas

Balé Stagium investiga as raízes do Brasil no bucolismo de 'Cordas do Coração'

Idealizado por Décio Otero e encenado por Marika Gidali, coreografia renova a pesquisa sobre a identidade nacional

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São Paulo

Dentro de cada coração, existem cordas tendinosas que controlam os batimentos do músculo. Sem os tendões, o ritmo das batidas ficaria descompassado, de modo que seria impossível assegurar vida ao corpo.

Cenas de 'Memória' e 'Cordas do Coração', do Balé Stagium
Cenas de 'Memória' e 'Cordas do Coração', do Balé Stagium - Arnaldo Torres/Divulgação

O coração seria, então, um instrumento de cordas: uma viola caipira gemendo. Há música no movimento do corpo humano. Por isso, "Cordas do Coração" é a nova coreografia do tradicional Balé Stagium, em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, num programa que se combina ao espetáculo "Memória".

"Tudo na vida tem um sentido. Minha fuga do Holocausto só me deu forças para trabalhar com dança no Brasil", diz Marika Gidali, de 85 anos, que emigrou para São Paulo, fugindo da perseguição nazista na Hungria. Agora, ela encena o balé idealizado pelo marido, Décio Otero, de 89 anos.

Desde 1971, o casal, que fundou o Stagium, investiga as raízes do Brasil em suas coreografias. É uma intervenção social pela dança ou uma interpretação possível do país, dizem.

Nesse sentido, "Cordas do Coração" só reafirma o pioneirismo do balé, que, nos anos 1980, realizou expedições pelo Brasil para vislumbrar a diversidade de ritmos regionais. Do mesmo modo, seriam muitas as possibilidades coreográficas para dar vazão à musicalidade nacional.

Imersa na gramática contemporânea, a obra inédita mantém o ímpeto de desvendar o "Brasil profundo", desejando unir mundos distantes. Em cena, os bailarinos formam três mosaicos cambiantes: a temática sertaneja, o lirismo barroco e o contemporâneo, fronteira entre os dois mundos.

De início, ouvimos a voz de Rolando Boldrin, morto em novembro passado, lendo um texto sobre a vida no interior. Depois, modinhas caipiras são tocadas na viola, "Tristeza do Jeca", do compositor sertanejo Angelino Oliveira, por exemplo.

Dois bailarinos se movem no palco de quatro patas. Em cima deles, fica uma bailarina, parada, se locomovendo graças ao trabalho dos parceiros em cena. É uma alusão ao trabalho dos bois, uma charrete desbravando o campo verdejante.

A composição dos corpos cria uma locomotiva humana e tem o peso do trabalho agrário. Ao mesmo tempo, a expressividade da bailarina antecipa o lirismo da seção seguinte da coreografia. Ela incorpora a teatralidade que Gidali imprimiu à dança brasileira, assumindo uma feição tristonha, de quem busca alcançar alguém.

Para definir a paisagem bucólica, os bailarinos entram em cena, carregando uma bailarina, que fica esticada na horizontal. Com as mãos abertas, cada uma despontando para uma diagonal, elas se transformam em troncos de árvores.

Então a viola emudece, e batidas secas soam solitárias no palco. Os bailarinos vão do fundo da cena até a boca, num ímpeto radical, agudo, até que o balé se rende à "Suíte para Violoncelo n°1", de Johann Sebastian Bach. As bailarinas ocupam o espaço com arabescos e saltos, alicerçados na técnica clássica.

"O balé clássico para nós significa preparação física", afirma Otero. "Não nos filiamos a nenhum estilo, fazemos uma mistura única, porque essa é a diversidade do nosso país."

À primeira vista, a música caipira parece ter nada a ver com o período barroco. Mas o timbre da viola de Angelino Oliveira se torna um complemento ao som rústico do violoncelo.

Do mesmo modo, a conquista de um "locus amoenus" representado pela vida no interior ganha outra dimensão diante da questão existencial e espiritual de Bach. Certo, "Cordas do Coração" entrevê uma visão positiva do cotidiano fora dos centros urbanos, mas tematiza também dilemas universais —afinal, o coração está anatomicamente ligado a todo ser humano.

Otero conta que se inspirou no trabalho do filósofo e músico alemão Albert Schweitzer para conceber os contrastes da coreografia. Em sua obra, Schweitzer havia unido as composições de Bach à musicalidade africana. Para ele, cada ser humano devia considerar sagrada toda e qualquer vida.

"Nossa brasilidade não está à venda na farmácia", diz Gidali. "Nossos bailarinos não entram em cena para se mostrar, mas para dialogar com o outro parceiro e, sobretudo, com o público."

Balé Stagium

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