Como Jaime Lauriano desafia história oficial do Brasil com suas obras irreverentes

Retrospectiva da carreira do artista paulista revisa passado colonial e ditatorial brasileiro e discute aquilombamentos

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Rio de Janeiro

Quem entra no Museu de Arte do Rio, o MAR, se depara com um calçamento de pedras portuguesas que têm em si inscritas os nomes de 12 regiões da África de onde grupos étnicos foram traficados para servirem como escravos no Brasil colonial e imperial.

A obra do artista Jaime Lauriano, criada em 2018 a pedido do museu carioca, é uma forma de provocar novas visões e interpretações da história oficial brasileira. Agora, Lauriano leva essa provocação para dentro do espaço expositivo na mostra "Aqui É o Fim do Mundo".

Com curadoria de Marcelo Campos e Amanda Bonan, a mostra reúne 15 anos da produção do artista que iniciou sua trajetória artística em 2008, incluindo quatro obras inéditas, criadas especialmente para a exposição.

'Ocupação' de Jaime Lauriano
'Ocupação' de Jaime Lauriano - Divulgação

A seleção trata, por um lado, de uma revisão crítica desse passado colonial e da ideia de Brasil e brasilidade que foi sendo criada ao longo do Império e da República —em especial durante a ditadura militar. Por outro, da própria história dos aquilombamentos e da luta do povo negro. Numa terceira vertente, há uma espécie de síntese, de como a história da arte sintetizou esta última questão.

Entre as obras do primeiro eixo, que se encontram logo na entrada do espaço expositivo, destaca-se "Invasão da Cidade do Rio de Janeiro". Criada especialmente para a exposição a partir de uma pintura do artista Antônio Firmino Monteiro, a obra de Lauriano faz uma crítica algo irônica e pictórica à formação da cidade. "Pego só o fundo. Tiro todas as figuras humanas", afirma.

No lugar das cenas habituais de batalhas e guerreiros, um canarinho, símbolo da Seleção, irritado, fotos do Cais do Valongo, tridentes vermelhos de Exu e, sobre a moldura, miniaturas de soldados, carros contra o Zé Pilintra.

Outras obras que dialogam com esse mundo, criadas por Lauriano, são as séries de mapas, como "E Se o Apedrejado Fosse Você?". Este, em um pano preto e desenhado com pemba —material utilizado nos rituais afrobrasileiros—, mostra uma caravela chegando no continente americano. No lugar do nome dos oceanos, há os termos "epistemicídio" e "genocídio".

Já "Ocupação" traz um mapa do Brasil num pano vermelho com dizeres como "Marco Temporal Não" e "Fascistas não passarão", que estão na ordem do dia de alguns setores políticos.

A mostra traz também uma seleção de objetos cotidianos e símbolos da esfera pública que tecem uma crítica da ideia de Brasil criada ao longo de séculos. São tapeçarias que retratam de maneira quase idílica o período escravocrata, calendários que ilustram cenas românticas do trabalho escravo —de um jeito que nem a versão cinematográfica de "E o Vento Levou" foi capaz de fazer— e diversas representações da bandeira nacional para uso doméstico.

"São referências de uma história colonial que subalterniza a população afrobrasileira. São os nossos lares cultuando a dor", diz o curador Marcelo Campos.

Lauriano conta que, uma vez que a história da arte criou sua própria ficção histórica, ele agora cria a sua versão. "Lutar contra a história da arte é lutar contra a colonialidade", afirma.

O artista vê como fato muito recente a presença de negros na produção artística brasileira, citando nomes como Emanoel Araújo, falecido no ano passado, Sonia Gomes, Paulo Nazareth e Rosana Paulino. "Se não fosse eles, o que eu faço seria artesanato", diz.

Vê a sua ascensão, como a de outros nomes de sua geração, não como um processo da história da arte brasileira. Mas, sim, como consequência das mudanças sociais pelas quais passou o país, fruto da luta do movimento negro.

Formado pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, Lauriano graduou-se por meio do Fies, programa de financiamento estudantil criado no governo Lula. O problema é como esse movimento não se expandiu a outros setores socioeconômicos, como ele mesmo mostra na obra "Trabalho".

O trabalho reúne além das representações idílicas da escravidão, uma série de frases que os negros costumam ainda ouvir e a lista de trabalhos (mal remunerados e pouco qualificados) em que costumam estar empregados ainda hoje, como se vê na Pesquisa do Trabalho do IBGE, que lhe serviu de base.

Lauriano acredita que há uma presença maior de negros hoje no campo das artes visuais justamente por este ser um mercado menor, mas que, em pouco tempo, os negros devem ocupar mais e mais cargos de "CEO". "Vai ter resistência, mas há uma contrarresistência." Essa é a história do povo negro, diz.

Jaime Lauriano

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