Como Ritchie, um britânico apaixonado pelo Brasil, compôs 'Menina Veneno'

Cantor comemora os 40 anos de seu disco de estreia, 'Voo de Coração', em apresentação única em São Paulo em maio

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O abajur é cor de carne. Isso não está aberto a discussão. "Chegou ao ridículo de me falarem que eu estava cantando a música errado", diz Ritchie. Autor de "Menina Veneno", o britânico foi vítima de uma espécie de fake news há alguns anos. Diziam que a cor do tal abajur era carmim. "Musicalmente, carmim nem rola", diz ele, teorizando sobre métricas poéticas do português com um sotaque britânico sutil.

Com 70 anos recém-completados, Ritchie comemora este ano as quatro décadas do lançamento de seu disco de estreia, "Voo de Coração", que o alçou ao topo das paradas brasileiras e será revisitado em maio, em apresentação única em São Paulo, no Cine Joia.

"Estou muito animado com esta volta. É a volta de quem não foi, porque sigo fazendo meus shows, mas discretamente", diz. "As pessoas querem ouvir os hits, e eu estou ali no palco para servir. Quem sou eu para levá-los para passear num bosque onde não conhecem ninguém?"

O cantor Ritchie em foto de 1985
O cantor Ritchie em foto de 1985 - Reprodução

O que Ritchie abre a debate, ao contrário da cor de carne, é a interpretação sobre a tal menina veneno. Há ali um apanhado de referências que vai dos ruídos que sua filha, um bebê à época, fazia ao subir a escada de seu duplex em São Conrado até conceitos da psicologia junguiana e uma placa de caminhão, de onde saiu o título da canção.

"A menina veneno tem um pouco de femme fatale, de Lorelai, de sereia. Queria uma música sobre uma manifestação de sonho e veio essa história meio onírica", conta. "Cor de carne é a carne do Carnaval, a carne de 'A Carne é Fraca', a carne da pele, e o Brasil tem muitas cores. É uma história que contamos nest a música."

A história do disco também tem um quê de onírico. Em 1983, Ritchie ganhava a vida como professor de inglês e se jogava como músico em projetos esparsos. Fazia alguns anos que frequentava os círculos musicais de Rio de Janeiro e São Paulo, gente que conhecera por intermédio de Rita Lee —amiga desde Londres. Ele chegou a lançar um álbum com a Vímana, banda que integrava ao lado de Lulu Santos e Lobão. "A gente era pretensioso", diz. "Queríamos ser o Yes, o King Crimson."

Outro parceiro era o poeta Bernardo Vilhena, com quem escreveu "Menina Veneno" em apenas vinte minutos. O artista tinha algumas canções gravadas e bateu às portas das gravadoras para vender seu projeto. Amargurou negativas. O primeiro contrato veio por um desses acasos da música, quando Fernando Adour, arranjador de Roberto Carlos, ouviu de soslaio a música do jovem e o diretor da CBS, Toma Muñoz, topou o contrato.

O álbum foi lançado no início de 1983 e chegou ao título de Disco de Ouro em apenas duas semanas após o lançamento. "Naquele ano, vendi mais que Michael Jackson com 'Billie Jean'", diz.

"Voo de Coração" é um disco entre mundos, não só porque ali reside um britânico culto que se apaixonara ainda jovem pelo Brasil, em 1973. O álbum soa tardio para as invencionices do rock que ecoaram nos anos 1970, de Raul Seixas a O Terço, e também tem ar antecipado para o synth pop que encharcou o rock nacional nos anos 1980.

"Quando a gente embarcou na ideia do pop, a gente reduziu tudo aquilo", diz Ritchie. "A gente embarcou em ideias mais digeríveis no disco, mas sem perder a coisa progressiva. Meu pop pode ser progressivo."

"Pelo Interfone" é uma balada romântica ritmada por uma batida de bateria eletrônica pré-definida. Já em "A Vida Tem Dessas Coisas", segunda faixa do álbum, Ritchie acompanha a melodia de teclados que emulam pianos e cravos. Guitarrista da banda de rock progressivo Genesis, Steve Hackett faz parte do disco na faixa que lhe dá nome e versa sobre hologramas, computador e solidão.

"Steve Hackett era casado com uma brasileira e eu o conheci em 1980, num carnaval em Itaipava", lembra Ritchie. "Pegamos uma guitarra emprestada do Lulu Santos para ele gravar 'Voo de Coração'."

O show de homenagem ao disco também contará com faixas de outros momentos da carreira de Ritchie. É o caso de "Transas", single que entrou na trilha sonora da novela "Roda de Fogo", de 1986, e "Shy Moon", composta com Caetano Veloso.

A apresentação também será uma comemoração do mais longo voo de Ritchie. Em 2022, o britânico completou 50 anos no Brasil e somente então conseguiu um visto de residência por tempo indeterminado no país. "Sou um estranho no ninho. Sou um Englishman Carioca", diz, parafraseando a música do conterrâneo Sting, "Englishman in New York".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.