Descrição de chapéu Artes Cênicas

Peça inspirada em '12 Anos de Escravidão' quer reação em vez de vitimismo

Espetáculo em cartaz no CCBB de São Paulo discute o trabalho forçado contemporâneo com tango, música e projeções

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São Paulo

Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo, "12 Anos ou a Memória da Queda" se inspira no livro "12 Anos de Escravidão", mas não hesita em fugir dele e também do longa-metragem lançado há dez anos que venceu o Oscar de melhor filme. A peça troca a escravização do século 19, relatada no livro autobiográfico de Solomon Northup, pela contemporânea, não menos vil.

Interpretado por David Júnior, Solomon é nos palcos um violinista negro que veio viver em São Paulo em busca de uma vida melhor. Ele conhece a personagem de Cintia Rosa, Omnira, e se encanta por ela, uma mulher negra com um currículo impecável, mas que custa a arranjar um emprego.

David Júnior e Bruce e Araujo em cena da peça '12 Anos ou a Memória da Queda'
David Júnior e Bruce de Araujo em cena da peça '12 Anos ou a Memória da Queda' - Jonatas Marques/Divulgação

O personagem de Bruce de Araujo, Joaquim de Alcântara, o único branco do elenco, é o cavalo de troia da peça. Ele se aproveita da dupla, oferecendo oportunidades de emprego que na verdade são uma maneira de sequestrá-los e escravizá-los.

Tatiana Tiburcio e Onisajé assinam a direção da peça, que é idealizada por Felipe Heráclito Lima e tem dramaturgia original de Maria Shu. O espetáculo foi montado primeiro no CCBB do Rio de Janeiro, com Carmo Dalla Vecchia no lugar de Bruce e Dani Ornellas no lugar de Cintia. Ficou em cartaz entre novembro e dezembro, até que, em março, chegou à capital paulista.

A peça é um tango a três, em que dois lutam pela sobrevivência e um pela dominação. E não é tango só por força da expressão. Os atores se movem pelo palco com o peito cheio, braços e coluna eretos, encaixando passos de uma dança que tem origem negra, embora isso seja pouco conhecido.

A narrativa flerta com o realismo fantástico, que aparece principalmente em metáforas marítimas. Joaquim é descrito como um tubarão branco, rei voraz dos mares que quer explorar o casal de peixes. O fantasioso está também em cenas oníricas, como em um pesadelo em que os personagens se visualizam como peixes no abatedouro.

Mas a peça não rejeita a literalidade. O discurso contra a exploração dos corpos negros é bastante direto, a ponto de trazer a narração de um caso real da prática criminosa em um momento e, em outro, os atores estabelecerem um diálogo com o público para explicar a metáfora do tubarão Joaquim.

"As críticas mais agudas são fundamentais e fazem parte da construção estética do teatro negro", diz Onisajé. "Infelizmente ainda não temos o direito de parnasianar e fazer a arte pela arte. Precisamos fazer arte também para nos defender, conscientizar e informar."

Foi Tatiana Tiburcio quem convidou Onisajé, mais velha e experiente, para estar ao seu lado na direção. Conseguiram enfrentar as dificuldades de dividir a liderança através do que compartilham como mulheres negras e do respeito mútuo.

"Uma das condições que exigi para entrar no projeto foi a gente ter a possibilidade de repensar esse olhar apresentado pela história sobre este tema", afirma Tiburcio. "A gente nunca fala de escravidão. A gente quer falar sobre esse sujeito dentro dessa condição e o que ele faz para reverter a situação. Um sujeito ativo, não passivo. Queríamos falar de reação, não de coitadismo ou vitimismo."

David, que trabalha na peça há mais tempo do que os colegas atores, diz que a história deixa marcas que não somem ao fim das apresentações. "Todo dia a gente recebe informações que mostram que o texto continua, infelizmente, sendo vivo no cotidiano do Brasil e do mundo", afirma.

Cintia Rosa se emociona durante a entrevista. No dia anterior, tinha subido ao palco com a notícia de que a vó, a pessoa importante em sua trajetória, falecera. Longe de casa, a atriz teve que ressignificar sua participação na peça para processar o luto.

"Sempre falo que este espetáculo é uma cura coletiva, porque a gente pode trazer para o palco os nossos ancestrais, falar de tudo que aconteceu —de toda a dor, de todo o sofrimento, mas também da beleza e da força que eles depositaram na gente."

Onisajé e Tatiana não pensam que esta será a última montagem da peça. Sem entrar em detalhes, a dupla diz que a próxima parada de Solomon, Omnira e Joaquim pode ser em Campinas.

12 Anos ou a Memória da Queda

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