Descrição de chapéu Artes Cênicas

'Tragédia' usa sinuca para discutir 'Antígona' e a atual divisão política do país

Em cartaz no Festival de Curitiba, peça da QuatroLosCinco traz homens que rememoram a vida enquanto jogam em birosca

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Curitiba

Mesa posta, a sinuca não está no palco para matar o tempo. Aquela superfície de veludo verde está ali para enterrar a morte, das bolas, mortas a cada tacada.

"Tragédia", peça da companhia mineira QuatroLosCinco, em cartaz no Festival de Curitiba, encena a vida brasileira em um bar de esquina.

Cena da peça 'Tragédia', no Festival de Teatro de Curitiba - Luiza Palhares

É o Brasil banal, que continua o mesmo, alheio à aleatoriedade do jogo político. As manchetes dependuradas nas bancas mudam dia após dia.

O tempo corre, ainda que, na sinuca, isso valha aquilo —a bola branca dentro da caçapa decreta a perda de todos os pontos; na superfície esverdeada, mão nenhuma pode encostar; o jogador deve manter os pés no chão em cada lance etc.

Anterior ao jogo, existem as regras, invisíveis, convencionando uma relação de causa e consequência. Assim é a vida, da política cotidiana ao que se passa nos corredores de Brasília. E, por um deslize —não da bola, que não pensa, mas do jogador—, o pacto social pode desmanchar, e a conjuntura política, ruir.

Escrita por Assis Benevenuto e Marcos Coletta, "Tragédia" não quer contar história alguma. Sob direção de Ricardo Alves Jr., três homens anônimos, vividos por Benevenuto, Coletta e Italo Laureano, se reúnem em uma birosca e começam a jogar sinuca. De frente para a mesa, refletem sobre a natureza do jogo e rememoram episódios do passado recente de cada um deles, em uma conversa descompromissada.

"Tem um jogo muito pungente entre nós três, há uma partida acontecendo, e isso dita o que vai se passar em cena", diz Laureano. "Em outro sentido, nós jogamos cenicamente, aquilo que vem do verbo ‘to play’, em inglês, mesmo que não estejamos aqui interpretando personagens."

Em uma cena, um dos jogadores lembra o episódio em que dois irmãos, bêbados, se mataram, depois de brigarem durante uma partida de sinuca. É a abertura necessária para o texto evocar "Antígona", tragédia de Sófocles, concebida por volta de 442 A.c.

O desfecho da "Trilogia Tebana" conta a desgraça, a que os descendentes de Édipo —Etéocles, Polinice, Antígona e Ismênia— estavam condenados. Etéocles e Polinice brigam pelo trono de Tebas. Os dois se matam, e o poder fica com Creonte, tio da dupla. Creonte decide que o corpo de Polinice não receberia as pompas fúnebres, tal como na tradição, alegando que o sobrinho lutara contra a própria terra.

Antígona, interpretada por Rejane Faria, compadece-se do corpo morto de Polinice, jogado ao léu. Então, decide, enterrar, ela mesma, seu irmão, sob o risco da pena de morte. Coube ao filho de Creonte, Hemon, matar sua noiva e a enterrar viva.

Hemon não suporta a desgraça e também se mata. Sabendo da morte do filho, a mulher de Creonte decide pelo mesmo fim.

A sucessão de tragédias se inicia por um fratricídio. Por isso, "Antígona" sustenta o desejo da companhia mineira de falar sobre a situação política do Brasil. Em um sofisticado labirinto textual, "Tragédia" mistura três temporalidades: o comentário sobre a "Trilogia Tebana", a partida de sinuca e a divisão política do país.

Embora não rejeite a epopeia, preferindo um pensamento adensado, a trama alcança um clímax, repetindo três vezes a cena, em diferentes contextos. Como parte do jogo linguístico, os atores filmam uns aos outros, criando um filme em tempo real.

A personagem de Antígona, por exemplo, passa quase toda a peça fora de cena, sendo filmada nos bastidores. Ela aparece, portanto, como um espectro que paira no palco, sendo literalmente um pano de fundo.

"Essa linguagem do cinema tem uma função temporal, é um deslocamento estético do que se passa em cena, o passado acontece naquela projeção", afirma Benevenuto.

Indicada a seis prêmios Copasa/Sinparc, o mais importante de Minas Gerais, "Tragédia" une a desgraça individual à coletiva.

Em cena, prevalece o tom soturno, que reforça a ambiência de mistério. Os engradados empilhados lembram um galpão antigo, e a porta de correr, onde as imagens são projetadas, um boteco fechado, porque já era tarde da noite.

"Quisemos encenar o Brasil popular, nada melhor do que a sinuca, que é onde as relações sociais se fazem", diz Coletta. Pior, "Tragédia" poderia ser uma noite qualquer numa cidade brasileira qualquer.

O jornalista viajou a convite do festival

Tragédia

  • Quando 03/04 e 04/04; 20h30
  • Preço R$ 40
  • Autor Assis Benevenuto e Marcos Coletta
  • Elenco Assis Benevenuto, Marcos Coletta, Italo Laureano e Rejane Faria
  • Direção Ricardo Alves Jr.
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.