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Romance de Fernando Aramburu tem desvios infinitos como uma série

'Quando os Pássaros Voltarem', do autor de 'Pátria', se lê como o diário de homem simpático que decide se matar em um ano

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Luís Augusto Fischer

Professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de 'A Ideologia Modernista', da Todavia

Quando os Pássaros Voltarem

  • Preço R$ 99,90 (544 págs.); R$ 69,90 (ebook)
  • Autoria Fernando Aramburu
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht

Há algo imprescindível, nas séries bem sucedidas do streaming, que parece estar presente também no romance de nossos dias: a capacidade infinita de oferecer desvios, derivações, ramos secundários das tramas, para resultar no aprisionamento do espectador por todos os episódios —prática que ganha o autocomplacente nome de "maratona".

Não é que esses ramos secundários sejam anódinos: eles são é dispensáveis para que o centro da trama se realize. Isso quando a trama tem de fato algum centro. Não é incomum que, ao contrário, a série simplesmente tenha apenas um dado cenário ou um certo contexto como elo geral, ficando cada personagem ou grupo à vontade para se desenvolver sem compromisso de convergir. "The White Lotus" é um exemplo recente.

homem idoso careca de camisa vermelha
Fernando Aramburu, autor de 'Quando os Pássaros Voltarem' e 'Pátria' - Ivan Giménez/Divulgação

Vai ainda uma segunda hipótese geral, antes de entrar no novo romance de Fernando Aramburu: convive muito bem com essa prática narrativa uma certa volúpia pela exposição de cenas constrangedoras. Uma ferida que supura, uma defecação ao vivo, a confissão serena e inconsequente de uma baixaria qualquer, cenas que o decoro moderno mantinha em segundo ou terceiro plano ganham agora os holofotes do proscênio.

Há uma soma virtuosa das duas dimensões, para os fins narrativos desse novo padrão, ecoando diretamente a ética das redes sociais —não há centro algum, porque tudo é centro, assim como não há limites para a autoexposição, porque nada garante a atenção.

"Quando os Pássaros Voltarem", de Aramburu, maneja essas duas dimensões com destreza, na forma de um diário de 542 páginas: professor de filosofia no secundário na Madri do presente, Toni delibera matar-se dali a um ano e acompanha esses 365 dias com anotações, lembranças, uma ou outra notícia sobre o presente espanhol e europeu, alguns palpites sobre a vida.

Nada há de trágico, nem mesmo de dramático, em sua vida mediana. Ele não é brilhante, mas dá conta do recado magisterial (e oferece amargas e certeiras queixas sobre o ambiente escolar); é separado de uma mulher dotada de boa projeção social, que lhe faz contraste e reforça sua baixa autoestima; tem um filho adulto e sem rumo, provavelmente fracassado; é um misantropo regular, com apenas um amigo, mas tem saúde e algumas economias. O que pega mesmo é que perdeu o gosto por viver.

ilustração de pássaros voando sobre fundo bege
Ilustração de Amanda Mijangos na capa de 'Quando os Pássaros Voltarem', de Fernando Aramburu - Divulgação

O romance se deixa ler sem dificuldades, como uma série bem conduzida. Mas o leitor é assaltado por uma dúvida, com frequência: eu preciso mesmo saber disso aqui, conhecer esse matiz, para que a história aconteça na minha mente, na minha sensibilidade, na minha maneira de entender o mundo?

Estivéssemos pura e simplesmente no reino da diversão e do passatempo, nada a obstar. Ocorre que o mesmo Aramburu escreveu "Pátria", romance decalcado em série, e nela, por mais que haja demoras e meandros secundários e até irrelevantes, o tema enfrentado garante tensão narrativa de monta —o fim das operações do ETA, o movimento separatista basco.

Como toda grande narrativa, "Pátria" nos permite reviver, com a vicariedade da arte, dramas humanos de fundo. Mas em "Quando os Pássaros Voltarem" a coisa desce de patamar.

Este resenhista teria muitos motivos para encontrar eco em si ao ler o romance: há um ceticismo sem revolta e uma revolta sem forma, que toda a nossa geração compartilha ao constatar que a redemocratização duramente conquistada nas décadas de 1970 e 1980, na Espanha como no Brasil, parece perder-se em irrelevância no atual contexto de ascensão da extrema direita. Sem falar da perda das ilusões iluministas, derrota que as redes sociais enunciam a todo momento.

Na lista dos méritos cabe ainda destacar certo bom humor e uma boa capacidade de autodeboche, que tornam Toni uma figura simpática, um amigo com quem dividiríamos a mesa com gosto. Mas nem isso é suficiente para tornar realmente importante a leitura desse bom romance

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