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'Um Livro dos Dias', de Patti Smith, expõe falha entre livro e Instagram

Postagens da lenda do rock, agora editadas e impressas, têm escrita proselitista e vazia de valor literário

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Um Livro dos Dias

  • Preço R$ 104,90 (400 págs.); R$ 49,90 (e-book)
  • Autoria Patti Smith
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Camila von Holdefer

Qualquer definição de "Um Livro dos Dias", lançamento da cantora, compositora e escritora americana Patti Smith, é insatisfatória. Afinal, a obra, que agora chega às livrarias, se distingue por questionar a função do objeto livro diante do avanço tecnológico do tempo presente.

Patti Smith
A cantora, compositora e escritora Patti Smith - Reprodução Facebook/Jesse Dittmar

Tal indeterminação está prevista no título. Conforme assinalado pela tradutora Camila von Holdefer, o leitor está diante "de um livro", e não "do livro". O conteúdo nele agrupado poderia ser outro, uma vez que um dia é feito por outros tantos acontecimentos. Certo, a obra reforça o descompasso qualitativo entre a obra literária e musical da autora.

"Um Livro dos dias" reúne fotografias publicadas no Instagram, onde Smith soma mais de 1 milhão de seguidores. Sua entrada na rede social se deu em 2018, por incentivo de sua filha, Jesse. Desde jovem, a autora de "Horses", disco clássico lançado em 1975, tinha o hábito de tirar fotos todos os dias com máquinas polaroides, fazendo, em seguida, uma breve anotação.

Smith comprou o primeiro celular em 2010, e o Instagram pareceu o repositório mais adequado para guardar sua produção fotográfica. A presença da artista num ambiente tão banal só aumentou o misticismo em torno de sua figura.

Durante a carreira, a cantora cultivou a aura de discípula do poeta inglês William Blake, definindo o rock como gênero refinado dentro de sua estética "suja".

Ao estilo gótico romântico, somou-se a iconoclastia, advinda da amizade de Smith com os poetas da geração beat, notadamente Allen Ginsberg. Reafirmando seu interesse por diferentes linguagens artísticas, a compositora lançaria os livros "Só Garotos", de 2010, e "Devoção", sete anos depois.

Nesse sentido, "Um Livro dos Dias" é sua obra literária mais radical, porque só se faz no imbricamento de texto e imagem. Há uma postagem de seu Instagram para cada dia do ano, acompanhada da respectiva legenda. A maioria das fotos homenageia artistas que influenciaram a cantora.

"Allen Ginsberg no Washington Square Park, 1966, repartindo poesia como se fosse pão; Virginia Woolf, nascida em 25 de janeiro de 1882. Essa é a cama em que ela sonhou; Esse é o chapéu do poeta Lawrence Ferlinghetti. Ninguém mais o usará."

No que se refere ao uso da língua, Smith está a todo momento demonstrando algo a alguém, o que é próprio da natureza das legendas do Instagram. Acontece que seu estilo acaba por ser enfadonho.

Destinada a louvar pessoas mortas, sua escrita é proselitista e vazia de valor literário. Ora, o chapéu usado por Ferlinghetti nada diz ao leitor-espectador. Sua poesia não cabe num chapéu.

Se alimentou o misticismo de poeta romântica, Smith repete uma devoção que pende entre o pueril e o irracional. O comportamento é elevado ao paroxismo nas visitas, todas registradas no livro, ao túmulo de poetas, como no caso de William Burroughs. Ao que parece, Burroughs esqueceu de inscrever em sua lápide um aviso: "eu não estou aqui".

As publicações mais curiosas dão conta de fotografias antigas em que Smith aparece com amigos de toda a vida, Lenny Kaye, seu guitarrista, ou o próprio Lou Reed. Em foco, seus objetos pessoais também suscitam interesse —o par de óculos, a poltrona de leitura, seus cadernos. Toda a tralha entrevê passagens biográficas de um cotidiano de recolhimento, pensamento e estudo.

Visualmente, Smith descolore a realidade, aplicando em suas fotos filtros em tons de sépia, preto e branco. É a mesma cor de seu terninho e de sua langorosa voz. Suas fotos têm importância documental e simulam expressão artística quando caminham para abstração, explorando luz e sombra da geometria dos objetos.

O mérito estético de "Um Livro dos Dias" é ser, ele próprio, uma falha entre o livro e a rede social. Na falha, habita uma pergunta ensurdecedora: faz sentido reunir, num objeto, imagens que se acumulam e se perdem na efemeridade da internet? É uma questão para a qual não há resposta. É própria de uma artista brilhante, e, ainda assim, é uma falha: a tentativa de apreender o tempo num livro.

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