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Bibliotecas desordenadas são melhores, defende escritor italiano

Roberto Calasso escreve que livros não devem ser organizados de maneira lógica, mas lúdica, para que o leitor se perca

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Alex Castro

Escritor, é autor de 'Atenção.' e 'Mentiras Reunidas'

Como Organizar uma Biblioteca

  • Preço R$64,90 (144 págs), R$37,90 (ebook)
  • Autoria Roberto Calasso
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Patricia Peterle

Antes, é preciso alertar a proverbial leitora desavisada: "Como Organizar uma Biblioteca" não é um manual de como organizar sua biblioteca. O capítulo "Como organizar uma livraria" também não é sobre como organizar uma livraria.

Nesse livro, não se encontrarão dicas práticas de catalogação biblioteconômica, mas talvez se descubram as surpreendentes vantagens de uma biblioteca desordenada.

O italiano Roberto Calasso, recentemente morto, é um dos mais famosos editores e ensaístas do século 20 na Europa. Ele começou a trabalhar na editora Adelphi em 1962, aos 21 anos, foi subindo na empresa, chegou a presidente em 1999 e, finalmente, em 2015, a comprou.

O escritor e editor italiano Roberto Calasso
O escritor e editor italiano Roberto Calasso - Giorgio Magister/Divulgação

Nos últimos 40 anos, escreveu uma série de livros mapeando um vasto panorama da cultura, da literatura e da arte ocidentais a partir de seus mitos fundadores.

O primeiro, publicado em 1983 e ainda inédito por aqui, foi "A Ruína de Kasch"; no Brasil, foram publicados "A Literatura e os Deuses" (2001) e "As Núpcias de Cadmo e Harmonia" (1988), ambos pela Companhia das Letras. Além disso, Calasso também escreveu diversas obras dedicadas a autores específicos, como "K." (2002), sobre Kafka, e "A Folie Baudelaire" (2008), sobre o poeta francês.

Em tudo o que escreveu, o elemento que mais se destaca é sua erudição sobre-humana. Calasso parecia ser o último intelectual total, daqueles ainda capazes de armazenar toda uma tradição cultural milenar em sua cabeça, articulando autores e obras com a facilidade que nós, cá fora, escalamos times de futebol e comentamos as tramas das novelas.

Italo Calvino, outro italiano genial que também parecia ter lido de tudo, assim descreveu "A Ruína de Kasch": "Esse livro tem dois assuntos: o primeiro é [o estadista francês Charles-Maurice de] Talleyrand, e o segundo é todo o resto".

O insight de Calvino vale para cada uma das obras de Calasso. O assunto de "Como Organizar uma Biblioteca" é, em primeiro lugar, a ordenação de livros e, em segundo, a totalidade do cosmos.

A obra é formada por quatro ensaios. O principal, que dá título ao conjunto e já vale o livro, foi publicado pela Adelphi, a editora de Calasso, em 2018. Os demais incluem o já citado "Como organizar uma livraria", um sobre as revistas literárias do período entreguerras, "Os anos das revistas" e um último contando a história da primeira resenha literária, "Nascimento da resenha".

Para Calasso, uma biblioteca precisava ser organizada não de forma utilitária e lógica, mas sim idiossincrática e lúdica, um lugar algo mágico onde a ideia não seria se encontrar, mas se perder. Em sua biblioteca perfeita, quando se busca um livro, se acaba pegando o que estava ao seu lado, e que se revela ainda mais útil. (Seriam os "bons vizinhos", na definição do historiador germânico Aby Warburg.)

A organização não pode ser por ordem alfabética, pois se funciona para escritores famosos, não funcionaria para livros onde o autor é frequentemente esquecido e apenas o assunto lembrado, sejam cogumelos, plantas da Cornualha ou partidas de xadrez.

Não bastam as grandes obras: também são necessários os livrecos, de temas como ocultismo, pornografia, memorialística. As primeiras edições são fundamentais para entender uma obra: são uma ajuda física, visual, tátil.

Os livros são encapados com pergaminho, não só para protegê-los, mas para dificultar a leitura da lombada: o conhecedor é forçado a distingui-los quase que pelo tato e os visitantes ocasionais não conseguem identificar os títulos.

Por fim, é uma biblioteca formada por livros que não são lidos na hora da compra e que, anos ou décadas depois, a pessoa subitamente precisa e se surpreende de encontrá-los em sua própria estante:

"Nada tira do fascínio de ter nas mãos —na hora— um livro cuja necessidade não se sabia até um momento antes. O gesto decisivo permanece o de ter comprado algo, um dia, pensando que seu uso era somente hipotético."

Para Calasso, o livro é daqueles objetos inventados "de uma vez por todas", surgido já pronto, a serviço de um mesmo gesto atemporal: ler textos, segurando nas mãos e virando páginas. Um mesmo gesto, poderoso e poético, quase um feitiço, através do qual marcas de tinta na polpa de árvores conseguem nos conectar diretamente com os cérebros de pessoas mortas há milênios.

Pois, no fim e no fundo, para ele, autor e editor, e para nós, leitores, esse é o momento mágico que justifica a literatura: um aposento silencioso, uma luz suave, um leitor bem disposto, e todos os livros do mundo.

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