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Contardo Calligaris critica obrigação de ser feliz em livro póstumo

Lançado dois anos após morte do psicanalista, 'O Sentido da Vida' traz Sêneca e Sócrates ao mundo dos influenciadores

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O Sentido da Vida

  • Preço 51,90 (144 págs.)
  • Autoria Contardo Calligaris
  • Editora Paidós

Em 2014, o escritor e psicanalista Contardo Calligaris disse em uma entrevista que não acreditava na busca pela felicidade e que tal obsessão humana lhe soava mais como um "ideal socialmente forte" e "um sucesso comercial".

A constatação mexeu com seus leitores e admiradores e o obrigou a voltar ao assunto inúmeras vezes. Esta obra póstuma, escrita pouco antes de sua morte, em 2021, é sua defesa definitiva de uma existência mais interessante do que propriamente feliz.

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O escritor e psicanalista Contardo Calligaris - Luiz Munhoz/Fronteiras do Pensamento

A edição conta com prefácio de Max Calligaris, filho único de Contardo, no qual relata aquilo que o pai de fato valorizava: "não a vida em si, mas a coragem de se permitir desfrutar, com atenção, das aventuras que ela eventualmente proporciona".

Para o psicanalista, um desses incidentes a ser contemplados com valentia e apreço é também a morte, tanto a experiência da própria finitude —"eu preferia, claro, se fosse possível, não apenas não sofrer (é meio ridículo dizer isso), mas estar vivo quando morrer"— como a importância de um atravessamento lúcido dos filhos diante da inevitável perda dos pais. "Você tem uma vida só e nela você só tem uma morte de seu pai. A qualidade da sua experiência não é definida quando você pode ficar sorrindo do começo ao fim, não; todas as experiências são ‘interessantes’."

É no mínimo muito "chistoso" perceber a presença do pai em um livro escrito por um psicanalista, área de conhecimento que evidencia, ao mesmo tempo, a culpa materna e o fascínio pela figura da mãe. Às voltas com sua incompreensão aficionada sobre o comportamento paterno, durante boa parte da juventude Contardo se perguntou o que levara seu próprio pai, um médico, a se colocar em risco na luta armada contra o fascismo italiano, ainda que não se considerasse um homem de esquerda.

A resposta enuncia a genialidade que o Brasil mais tarde teria a sorte de reverenciar de perto, ao acompanhar o trabalho do seu filho: "‘Não vamos deixar algumas pessoas decidirem nossa vida sob o pretexto de que poderiam decidir nossa morte’".

Ainda perseguindo uma compreensão maior do que seria, tanto para o homem antigo quanto para o moderno, alguma transcendência que pudesse dar ares de "bonito, bom e verdadeiro" para o epílogo de uma vida —e, aqui, Contardo aproveita para dizer que temos a mania de aproximar, por uma confusão talvez herdada dos gregos, valor estético de valor moral—, o autor rememora as mortes assistidas dos filósofos Sêneca e Sócrates: "É como se fossem dois influenciadores da internet que estão transmitindo sua morte ao vivo, e essa transmissão é o que sustenta e lhes dá ânimo para continuar".

Mas, nos dias de hoje, o que resta à criatura que já nasce para se individualizar como sujeito? Segundo Calligaris, a psicanálise. "Se tem uma coisa que todos os psicoterapeutas têm em comum, é que a especialidade do psicoterapeuta é buscar entender como valorizar a vida concreta sem precisar de uma transcendência. Ou seja, sem recorrer a valores externos à vida concreta do paciente."

E ainda: "é por isso que a terapia acaba sendo um trabalho quase estético, um trabalho de recriação narrativa de uma vida, que dá atenção a uma vida de tal forma que ela se valoriza".

Contardo desconfiava de livros que transformassem em sofrimento "nossa eventual falta de certezas". Nessas obras, que serviriam somente para tapar buracos em bibliotecas —e não para valorizar os buracos de nossa existência—, "o fato de que não conseguimos descobrir o suposto sentido da vida (ou que não sabemos inventá-lo) se transforma numa dolorosa aflição que nos define".

Não é o que acontece nestes três breves e extraordinários ensaios sobre a obrigação de ser feliz, a ideia de "morrer bem" e o sentido da vida. Todos os textos trazem respostas ao melhor estilo do autor: raciocínios complexos e com embasamento acadêmico, envoltos por fluidez palatável.

Essa me parece ser justamente a intenção do selo Paidós, ao primar pela inteligibilidade em temas antes fadados a uma linguagem douta e restrita.

Acho interessante como a psicanálise continua viva, necessária —e pop, por que não?—, através de pessoas como Contardo Calligaris, Christian Dunker e Vera Iaconelli, que ousaram sair das salinhas das grandes universidades para alcançar leitores, seguidores, ouvintes e até mesmo fãs.

Quantos novos psicanalistas mais humanos ou mesmo escritores mais curiosos não são formados a partir desse movimento de generosidade intelectual?

Em "O sentido da vida", Calligaris conta que sua tia Rosália, irmã mais velha de seu pai, certa vez lhe disse uma frase —um verso de Petrarca, na verdade— que ficou para sempre em sua memória: "Uma morte bonita honra a vida inteira".

Por amigos em comum, sei que, diante do fim, Calligaris disse que esperava apenas estar à sua altura —ele se referia à morte. Nunca vi uma resposta tão bonita, digna e corajosa.

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