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Artes Cênicas

Peça 'A Cerimônia do Adeus' cresce ao confiar na grandeza do texto

Montagem tem elenco desigual em qualidade, mas consagra Malu Galli e se impõe como a melhor produção da temporada

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São Paulo

A Cerimônia do Adeus

A certa altura, é comum que artistas lancem mão de suas biografias para criar histórias que buscam por uma conexão imediata com o público. No cinema, nos últimos dois anos, ao menos quatro nomes —Steven Spielberg, Sam Mendes, Alejandro González Iñárritu e Kenneth Branagh— apelaram para o truque.

No teatro também não é raro. Pelo menos três dos grandes textos foram produzidos a partir das biografias de seus autores. "Longa Jornada de um Dia Noite Adentro", de Eugene O’Neill, "À Margem da Vida", de Tennessee Williams, e "Três Mulheres Altas", de Edward Albee.

Malu Galli em 'A Cerimônia do Adeus', dirigida por Ulysses Cruz - Lenise Pinheiro/Divulgação

Não tivesse o paulista Mauro Rasi nascido no Brasil e produzido suas obras em português, "A Cerimônia do Adeus" completaria essa quadra sem problemas. O texto narra as memórias de um adolescente apaixonado por Simone de Beauvoir e em constante conflito com a mãe em plena descoberta de sua sexualidade. Como plano de fundo, os anos duros da ditadura militar.

Quando a obra ganhou os palcos pela primeira vez, em 1987, o autor já tinha mais de duas décadas de carreira e era celebrado por ao menos dois grandes sucessos, "Doce Deleite", com Marília Pêra e Marco Nanini, e "Batalha de Arroz num Ringue para Dois", estrelado por Miguel Falabella e Cláudia Jimenez.

"A Cerimônia do Adeus" foi o início de sua sagração, sacramentada com "A Estrela do Lar", estrelada por Marieta Severo, e "Pérola", com Vera Holtz. A montagem original, contudo, não agradou o diretor Ulysses Cruz, que em 1989 deu sua própria leitura para o texto no palco do Teatro Anchieta, onde cumpre temporada 34 anos depois.

Cruz estrutura a encenação considerando a imponência e importância que a obra de Rasi conquistou ao longo das décadas seguintes. O diretor jamais busca se sobrepor ao texto, resultando no grande acerto desta que é uma das melhores produções da temporada.

O diretor busca, sim, conexões com a linguagem do teatro contemporâneo, mas se limita a investigar as possibilidades no ótimo desenho de luz, assinado por Nicolas Caratori, na trilha de André Abujamra, e no cenário assinado pelo próprio diretor, que tensiona mais as linguagens entre teatro clássico e moderno.

É o melhor trabalho de Cruz desde "O Camareiro", produção derradeira na trajetória de Tarcísio Meira. Não por acaso, o diretor trabalha com os mesmos elementos: a conexão entre elenco e dramaturgia.

O diretor leva tanta fé no texto que é perceptível o quanto o elenco parece à vontade, ainda que destoante. Há, é verdade, um desnível desconfortável entre atores veteranos, que voam em céu de brigadeiro, e a parte mais jovem, que ainda parece não se encontrar exatamente com a proposta do texto de Rasi.

Se Olívia Araújo e Eucir de Souza cativam nas peles da espírita Brunilde e do filósofo Jean Paul Sartre, Fernando Moscardi e Lucas Lentini, este último interpretando o protagonista Juliano, rendem menos que seus colegas. Rafael Bona se sai melhor como o pseudo-miliciano Lourenço, enquanto Beth Goulart está em um de seus melhores momentos em cena como Simone De Beauvoir.

Mas o destaque da montagem é inegavelmente Malu Galli, na pele de Aspázia, a mãe do protagonista que, sem saber como se conectar com o filho, se vê sobrecarregada com os cuidados da casa, um marido doente, os problemas da irmã e o medo dos caminhos percorridos pela cria.

Com excelente timing cômico, Galli mergulha no drama suburbano sem medo de fazer graça com o melodrama patético de sua personagem, sem, contudo, fazer troça dela. Sua Aspázia é cativante e doce, e estabelece conexão imediata com o público, mesmo quando assume registros ácidos e sardônicos.

Galli é o achado de uma montagem repleta de acertos, e que tem apenas um erro comprometedor. O intervalo entre os atos prejudica o ritmo, até então irrepreensível, da produção.

"A Cerimônia do Adeus" volta a emergir como um dos grandes textos da dramaturgia nacional e acende o questionamento do por que produtores têm escolhido gastar tanto dinheiro com os direitos autorais de obras americanas, que pouco ou nada dialogam com nossa realidade, se há um baú de clássicos e novos textos prontos a entrarem em cena.

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