Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Simone de Beauvoir discutiu aproximação entre filosofia e literatura

Pensamento filosófico ganha profundidade quando interage com criação literária

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No último final de semana, participei como ouvinte de uma oficina de filosofia organizada pelas professoras Ilit Ferber, da Universidade de Tel Aviv, e Maria del Rosário Acosta López, da Universidade da Califórnia, Riverside, cujo principal tema, o isolamento, foi abordado a partir de vários recortes teóricos e interdisciplinares.

O evento contemplou discussões sobre a relação entre trauma e isolamento a partir de uma análise de narrativas de sobrevivência, a importância de uma ética da escuta, o impacto social da experiência do isolamento durante a atual pandemia etc.

Entre as comunicações que mais me chamaram a atenção, Nassima Sahraoui e Caroline Sauter, da Universidade Goethe, em Frankfurt, apresentaram uma série de reflexões sobre o amor, o isolamento e a experiência da nossa vida interior a partir de uma análise sobre como esses temas são desenvolvidos em quatro sonetos de Shakespeare (27, 28, 29 e 30).

À medida que estudávamos esses versos, lembrei-me de uma coluna que escrevi para a Folha faz algum tempo, a questionar o tipo de conhecimento que obtemos a partir da literatura. Na ocasião, apresentei ao leitor um resumo do posicionamento do filósofo britânico R.W. Beardsmore, para quem a literatura nos oferece a oportunidade de aprendermos algo sobre a vida, mostrando-se muitas vezes capaz de alterar a nossa visão de mundo.

Hoje, portanto, ainda sob o impacto das reflexões compartilhadas durante a oficina de filosofia, volto a tratar desse assunto por uma abordagem complementar, através da qual me proponho a refletir sobre o que determinadas maneiras de se fazer filosofia poderiam ganhar a partir de um diálogo com o universo literário.

Em "Literatura e Metafísica" (1946), Simone de Beauvoir comenta que, quanto mais uma filosofia se aproxima do exame de questões relativas à subjetividade, mais os seus representantes sentem a necessidade de buscar um diálogo com a literatura.

Para Beauvoir, "enquanto filósofo e ensaísta oferecem ao leitor uma reconstrução intelectual das suas experiências, o romancista pretende reconstituir essas experiências em um plano imaginário, tal elas ocorrem antes de qualquer explicação".

Entre os filósofos que se aproximam da literatura, Beauvoir menciona Hegel —em cuja obra encontramos referências às criações literárias de Sófocles, Ésquilo, Shakespeare, Goethe etc.— e Soren Kierkegaard, cujo texto "O Diário de um Sedutor" (1843) busca, segundo ela, emular a estrutura narrativa de um romance.

Embora a ênfase do texto de Beauvoir recaia sobre as virtudes do romance em recriar os elementos estruturais que informam a condição humana, ao exemplo da nossa experiência da subjetividade enquanto projeção, da vivência da nossa liberdade a partir de situações específicas e do nosso embate com a finitude —temas os quais ela mesma desenvolve em romances como "A Convidada" (1943), "O Sangue dos Outros" (1945), "Todos os Homens são Mortais" (1946) e "Os Mandarins" (1954)— , em nossa leitura do seu ensaio "Literatura e Metafísica", não devemos presumir que tal abordagem fenomenológico-existencial encerre a discussão sobre literatura e filosofia nem que os pensadores mencionados por Beauvoir foram os únicos a recorrer à literatura ao longo da história do pensamento ocidental.

Já no século 18, temos uma série de textos filosóficos desenvolvidos em vários gêneros literários, como o ensaio "Resposta à Pergunta: O Que É o Iluminismo?" de Immanuel Kant, a autobiografia "Confissões", de Jean-Jacques Rousseau, o romance "Anton Reiser" de Karl Philipp Moritz, o diálogo filosófico "Phaedon" de Moses Mendelssohn, o drama "Nathan, O Sábio" de G.E. Lessing e as obras poéticas de autores como Schiller.

Igualmente, durante os séculos 19 e 20, esses e outros gêneros, como a escrita aforística de Nietzsche e Cioran, as parábolas de Franz Kafka e a reportagem "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt, passaram a integrar a filosofia europeia.

Para Martha Nussbaum, autora de "Love’s Knowledge: Essays on Philosophy and Literature" (1990), o estilo de um texto é determinante quanto ao tipo de questionamento a ser desenvolvido pelo seu autor. Segundo ela, do mesmo modo que, em qualquer estilo, uma abordagem teórica abstrata também destaca elementos nos quais devemos ou não focar a nossa atenção, enfatizar quais faculdades do leitor são essenciais ou não para acompanhar um determinado tipo de discussão.

Nussbaum também comenta que, quando uma abstração filosófica se mostra deficiente em sua tentativa de apresentar aspectos importantes da experiência humana, uma narrativa literária de um certo estilo ou gênero pode nos ajudar a examinar tais elementos mais apropriadamente.

Em um dos seus ensaios sobre "A Taça de Ouro" (1904), célebre romance do escritor americano Henry James, Nussbaum observa que, para esse autor: "O conhecimento moral não é apenas a apreensão intelectual de fatos particulares: sim, percepção. É enxergar uma realidade complexa e concreta de modo extremamente lúcido e responsivo. Ou seja, é assimilar o que se apresenta com imaginação e sentimento".

Beauvoir em casa, em Paris
Simone de Beauvoir em casa, em Paris, em fotografia publicada no livro 'Simone de Beauvoir, uma Vida' - Jacques Pavlovsky/Sygma Coleção/Getty Images

Uma filosofia voltada ao exame da condição humana, seja na sua dimensão moral ou afetiva, ganha em profundidade a partir do momento em que interage com a literatura. No caso de Beauvoir, a própria atividade literária pode ser uma maneira de se fazer filosofia.

No caso de Nussbaum, a leitura de James fez com que ela notasse que as ações dos personagens e a comunicação entre eles, bem como as imagens adotadas pelo romancista para descrever sentimentos e sensações, estariam impregnadas de valor moral, permitindo-lhe fazer com que a literatura se tornasse uma forte aliada no desenvolvimento das suas próprias reflexões filosóficas.

O que me leva a perquirir, muitas vezes, no que a atividade do filósofo se assemelha àquela do crítico literário. Até que ponto a atividade filosófica, caracterizada enquanto continuação de um diálogo com uma determinada tradição intelectual, também não se beneficiaria de muitas das ferramentas interpretativas que utilizamos para tentar compreender e extrair novos significados tanto de uma obra literária como da nossa própria cultura.

Erramos: o texto foi alterado

A coluna grafou incorretamente o nome de Caroline Sauter.

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