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Tony Goes

Rita Lee estaria rindo dos moralistas que ignoram sua relação com drogas

Não dá para contar a história da cantora sem lembrar que ela foi presa por porte de maconha e afundou nas drogas pesadas

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São Paulo

Em 2012, Rita Lee fez o último show de sua carreira em Aracaju, ao ar livre. Terminada a apresentação, a cantora e compositora foi diretamente para uma delegacia de polícia, acusada de desacato à autoridade. Ela havia xingado de "cavalos" e "filhos da puta" os policiais que prendiam pessoas fumando maconha na plateia. Liberada logo em seguida, disse que não retirava uma única palavra.

Antes vista como uma deusa libertária, Rita foi atacada nas redes sociais como uma perigosa meliante. Era um sintoma do moralismo retrógrado que surgia então no Brasil, e que desembocou no governo mais reacionário da nossa história.

Show de Rita Lee durante comemoração do aniversario de São Paulo, em 2013, no vale do Anhangabaú - Alessandro Shinoda/Folhapress

Esse governo foi derrotado nas urnas, e seu conservadorismo seletivo parece estar saindo de moda. Mas um novo tipo de moralista vem emergindo na internet, embalado pela cultura do cancelamento. Em comum com sua versão anterior, esse novo moralismo também vê um inimigo na imprensa tradicional.

Nesta terça (9), um dos muitos textos publicados pela Folha sobre a morte de Rita Lee suscitou uma reação no Twitter. A matéria de Laura Mattos tinha como chama "Rita Lee, rebelde desde a infância, se deixou guiar por drogas e discos voadores".

Foi o que bastou para a Folha como um todo ser chamada de insensível, desrespeitosa, hostil e, supremo insulto, Jovem Pan. "Eu não faço mais a menor ideia do que está acontecendo com a Folha", escreveu o influenciador Felipe Neto. "Está cada dia pior, de um jeito realmente horrível".

Um pouco depois, o texto teve seu título alterado para "Drogas tiveram papel político na trajetória de Rita Lee, rebelde desde a infância". Não por causa das reclamações dos internautas, mas porque o jornal acreditou que seria mais condizente com o conteúdo do texto.

A mudança não sensibilizou os críticos. Muitos parecem preferir que Rita Lee seja louvada como a santa que ela nunca foi. Acontece que não dá para contar a história da artista sem mencionar sua longa e complicada relação com as drogas.

Rita foi presa várias vezes por porte de maconha. No começo da década de 1980, no auge do sucesso e com três filhos pequenos, se afundou de tal maneira nas drogas pesadas que precisou sair de casa, indo morar sozinha por um tempo.

Nunca fez apologia de nada, mas também nunca negou nada. Descreveu suas experiências com vários tipos de narcóticos em seu livro "Uma Autobiografia", lançado em 2017. E se orgulhava de ter largado tudo, já depois dos 60 anos de idade, incentivada pela chegada dos netos.

As novas gerações não tiveram o privilégio de crescerem embaladas por hits como "Mamãe Natureza" ou "Lança Perfume". Rita nos ensinou que a mulher pode tudo, inclusive liderar uma banda de rock e gozar feito louca na cama. Também mostrou que é possível mergulhar nas drogas e depois sair delas, mesmo que pagando um preço altíssimo por isto.

Quem se choca com uma manchete que junta Rita Lee e drogas na mesma frase não conhece a biografia da cantora, nem sabe muito bem o que é jornalismo. Não há nenhum desrespeito em tocar neste assunto, do qual a própria Rita jamais fugiu. Ela, aliás, estaria rindo dessa comoção no Twitter, e acrescentando detalhes escabrosos sobre tudo o que consumiu ao longo da vida.

Triste Brasil, em que um moralismo retrógrado parece estar na vazante, mas sendo rapidamente substituído por outro, "do bem", hipersensível e ignorante, que prefere uma versão edulcorada da realidade.

Para isto, não há antídoto melhor do que a própria Rita Lee. Ela mesma escreveu seu epitáfio, que aparece no final de "Uma Autobiografia": "Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa".

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