Descrição de chapéu
Rita Lee

Como era fotografar Rita Lee, que subvertia a caretice na ditadura

Bob Wolfenson relembra foto que fez da cantora ao piano, com uma jaguatirica, pouco depois de ela sair da prisão, em 1976

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Bob Wolfenson

Corriam os anos 1970, vivíamos no Brasil os tardios eflúvios da onda hippie e rebelde, surgida uma década antes nos Estados Unidos e na Inglaterra. Tudo isso sob a ditadura militar no seu momento mais cruel.

Uma certa parte da juventude encontrou no comportamento, nas roupas e no visual extravagante a via de rebeldia diante da opressão e da caretice reinante e oficial. Rita Lee era a personificação completa deste sentimento. Com sua iconoclastia e coragem, enfrentava os cânones do bom mocismo, sem ser, digamos assim, militante em atividade partidária.

Rita Lee em retrato de Bob Wolfenson feito em 1976
Rita Lee em retrato de Bob Wolfenson feito em 1976

Eu, um jovem fotógrafo, cabeludo, vestindo jeans com um pano de estampas florais formando uma boca de sino na calça, camisa aberta no peito, portando uma câmera Nikon 35 mm e influenciado pelos ares do movimento Swinging London, me sentia catapultado à cena artística e cultural da época diretamente de uma tela do filme "Blow Up", de Michelangelo Antonionni, que tinha elevado a figura do fotógrafo a um patamar de charme e sedução até então fora do alcance do grande público.

O cineasta baseou-se, para a construção do personagem fotógrafo de seu filme, na figura lendária do inglês David Bailey. Sincronicamente à figura de Rita Lee, Bailey personificava também um "enfant terrible", só que no mundo da fotografia mundial, com sua rebeldia e desalinhamento às injunções do mercado e ao mundo da moda.

Mas vamos à experiência inaugural de nossa sessão fotográfica, naquele primeiro encontro que tive com Rita em sua casa da rua Pelotas, na Vila Mariana, em São Paulo.

Ela já era uma estrela, e eu ainda estava nos primórdios do ofício. Se minha memória não reteve os detalhes deste encontro, acredito que foi logo após sua saída da prisão, em 1976. Detida sob a alegação de porte de entorpecentes, ela na verdade foi presa por seu comportamento lindamente afrontoso contra as autoridades estabelecidas da ditadura militar.

No entanto, neste encontro, paradoxalmente, ela estava alegre, disponível e, claro, desafiadora, oferecendo sua jaguatirica adorada para figurar na imagem ao pé de um teclado do piano, como se a felina fosse uma pianista.

Com o tempo, esta fotografia tornou-se icônica, carregada claramente pela trajetória de sucesso de Rita, mas também por incorporar o zeitgeist daquele momento: a câmera de cima, a lente grande angular distorcendo a geometria do ambiente, a presença exótica da fera e o jovem fotógrafo operando a máquina fotográfica e sendo contemplado pelo olhar irônico e provocador de Rita.

Neste período, fiz ainda muitos outros retratos dela, mas minha percepção embaralhou o tempo, ao ponto de eu não distinguir se muitos, ou estes muitos outros, são em outros lugares e em outros dias.

Fato é que fotografei Rita ao longo de décadas e, a cada vez, produzíamos ensaios com tons e características diferentes. Em todos, porém, são palpáveis sua direção, suas ideias e sua criação, na maioria das vezes em parceria com seu marido, Roberto de Carvalho.

Eu, por sorte, contribuí registrando as criações que emanavam dos dois e de alguns diretores criativos contratados por eles, como Gringo Cardia, que assinou a capa e o libreto do álbum "Santa Rita de Sampa", cujas fotografias foram de minha autoria.

Como dizia o retratista norte-americano Richard Avedon, "o fotógrafo é um especialista em breves encontros e, portanto, o fato de retratar alguém não lhe confere alguma intimidade com o sujeito diante de sua câmera".

Cito Avedon pois, em que pese as inúmeras vezes em que tive o privilégio de estar com Rita nas sessões fotográficas, e estes encontros terem sido intensos, afetivos e profícuos, o que fica deles além de memórias fugidias é o resultado. O tal do retrato que vai se apurando com o tempo, levando consigo todos os signos de sua época e agora está junto à Rita, garantindo lugar permanente na eternidade.

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