Descrição de chapéu Moda

São Paulo Fashion Week tem retrô chic, abstração literária e libido escancarada

Inspiração em natureza-morta e vazio existencial dividem espaço com futuros livres de racismo e castrações

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São Paulo

A coleção "Vazio", da Mnisis, foi recebida com empolgação pelo público na São Paulo Fashion Week, nesta sexta-feira (26). A etiqueta de Marina Costa tornou visual e tátil uma abstração literária, como o título desta estação sugere.

Inspirados no livro infantil "Vazio", de Anna Llenas, os looks foram divididos nos subtemas luto, tampa e aceitação. A ideia foi investigar o vazio existencial por uma lupa feminista, propondo uma comunhão em torno disso.

Desfile da Apartamento 03 na São Paulo Fashion Week - Adriano Vizoni -26.mai.23/Folhapress

A passarela foi ornamentada com balões espelhados e imagens de padrões em xadrez liquefeitos. Os modelos trajaram peças de silhuetas leves e caimento confortável. A onipresença de transparências mostrou que a estilista buscava evocar algo de etéreo nas roupas que foram desfiladas.

O preto apareceu em shorts, calças e vestidos —foi a cor predominante, mas creme, lilás, rosa e verde abacate também tiveram presença significativa. Uma calça azul e um vestido rosa causaram frisson com uma cascata de barras e babados, respectivamente.

Mas o clímax foi a modelo com os seios à mostra, usando um véu verde que descia do pescoço aos braços. Inesperado, o look deu ao público um vislumbre da libertação vinda com a aceitação do tal vazio.

Outro destaque foi um grisalho tatuado usando luvas transparentes na cor creme; a partir do punho, elas subiam pelos braços e envolviam o pescoço do modelo. A cantora Liniker desfilou para a Mnisis —foi a segunda aparição dela em passarelas da semana de moda, após desfilar para a etiqueta Martins.

Se a coleção da Mnisis partiu da subjetividade literária, a da Apartamento 03 buscou inspiração na pintura de natureza-morta de Estevão Silva, filho de escravos e o primeiro pintor negro a se tornar um nome robusto na arte brasileira do século 19, após estudar na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Flores e frutas em transparências e plissados farfalharam pela passarela, cobrindo peças majoritariamente pretas, off-white, vinho e, vez ou outra, azul e verde metalizados. A marca, que tem Luiz Cláudio na direção criativa, acolheu o público com essa envolvente história postulada para o próximo verão.

Uma saia xadrez acompanhada por uma camisa marrom de manga longa repleta de babados abriu o desfile já deixando bem claro que o conforto e a elegância da alfaiataria também são personagens desse enredo.

Jaquetas, calças e blazers serviram de tela para a releitura de Luiz Cláudio, que buscou fazer peças para ocasiões sociais —ou até mesmo de gala— e casuais. A transparência dos véus com imagens de natureza-morta evocou o etéreo, assim como na Mnisis.

MnisisSPFW N55-Foto:  Ze Takahashi/ @agfotosite
Desfile da Mnisis - Ze Takahashi via Agência Fotosite/Divulgação

Mas não pense que essa sutileza poética não cedeu lugar, em alguns momentos, a looks pendendo para o lado bafônico que um desfile pode ter. A combinação de off-white com joias prateadas trouxe brilho à passarela. Sobretudos, jaquetas, calças e blazers integraram a coleção —e um vestido xadrez deve ter feito a pulsação de muitos fashionistas acelerar. Costas e laterais nuas, de modo que a estrutura das roupas ficava visível, afirmaram que a sensualidade também pinta lindos quadros agradáveis de olhar.

Com a coleção "Cor de Pele", a Dendezeiro iniciou a segunda noite do evento louvando a ampla paleta de cores da diversidade étnico-racial do Brasil. A etiqueta soteropolitana explorou a fundo as possibilidades abertas pelo conceito e deu ênfase às peles negras e indígenas.

Fundada por Hisan Silva e Pedro Batalha —ambos negros e gays—, a marca entrou na passarela com quase meia hora de atraso, mas o público do Komplexo Tempo, na Mooca, parece não ter se incomodado com isso, dadas as reações positivas com aplausos e urros no decorrer da apresentação.

Um vídeo exibido ao fundo fez referência ao afresco "A Criação de Adão", de Michelangelo, com dois modelos negros tocando a ponta do dedo indicador um do outro. A afirmação ali foi a de que, na coleção, a pele humana seria tratada como tela de pintura. E foi mesmo.

Jaquetas volumosas, longas saias felpudas decoradas com rostos, calças de alfaiataria com ares de streetwear e sungas foram instrumentos da investigação, bem como macacões que vestem do pescoço aos pés. A variedade de texturas e combinações das cores dominantes —creme, bege e marrom em diferentes tons— mostrou de maneira contundente os resultados dessa pesquisa sociológica em forma de moda.

As cantoras Liniker, Majur e Pocah, por sua vez, apresentaram alguns dos looks mais dramáticos. A primeira ostentou um casaco escuro que deixava um pedaço generoso de seu peitoral à mostra, assim em contraste com seu cabelo loiro. Majur, com uma expressão lânguida no rosto, ostentou nas pernas uma estrutura de bota de couro com zíper. Pocah usou uma longa saia marrom escuro e uma jaqueta cuja frente tinha aparência de concha; aberta no peito, ela se fechava no pescoço com botões.

Os estilistas mostraram também saber como convidar a plateia a usar seu instinto investigativo ao apresentar composições peculiares. Nesse sentido, destacam-se, por exemplo, uma jaqueta de barra à altura das costelas, as camisetas off-white com o mapa do Brasil estilizado com as cores da paleta, o top fino —quase uma simples tira— acompanhado de uma jaqueta espessa com franjas e um casaco sem mangas.

Já a etiqueta mineira Led, com a coleção "Exodos", assumiu riscos criativos admiráveis ao explorar o tesão. Sim, "tesão" —a palavra apareceu em várias peças no decorrer do desfile. Vários dos looks foram literais ao remeterem à iconografia do fetichismo, como couro, body chains, argolas de metal e harness. Foi como assistir a uma libido represada ser finalmente liberada. Algumas pessoas da plateia puxaram aplausos nesses momentos, talvez surpresas com o silêncio de muitas outras. Um modelo causou frisson ao mostrar o bumbum com uma sunga cavadíssima preta e feita de crochê, e quase todos eles entraram com a pele molhada reluzindo sob as luzes.

Os momentos mais felizes da Led, entretanto, foram quando ela subverteu as expectativas ao fugir do óbvio —peças que cobrem o corpo, afinal, também têm lá a sua dose de sensualidade justamente por alimentar o mistério em torno de quem as veste. Jeans, sarja, franjas e tricô foram abundantes, assim como óculos escuros e peças de tricô vazadas que, à distância, tinham quase o mesmo efeito da transparência. Falando nela, um conjunto azul composto por camisa e calça trouxe à apresentação uma inesperada suavidade.

Outros pontos altos da coleção foram um conjunto listrado, um sobretudo oversized cintilante, calças felpudas na cor caramelo e a presença da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que usou um longo casaco rosa adornado com padrões pretos, um cinto de argolas metálicas —assim como os brincos— e meia-calça preta florida.

A carioca The Paradise, para o bem ou para o mal, fez a palavra "extravagante" parecer tímida para descrever o que ela apresentou na passarela. Conhecida pelo maximalismo atordoante, a etiqueta propôs ao público a apreciação de um espetáculo algo próximo dos fogos de artifício no Ano-Novo em Copacabana. A vibe brechó chic tropical ganhou vida nas interações dos modelos com a plateia, que a seduziram e afrontaram democraticamente, pois o uso inteligente do espaço, na passarela em forma da letra T, permitiu o elenco se aproximar de quase todo mundo.

A dominância das estampas de oncinha foi anunciada logo de cara pela abertura com Eloína dos Leopardos, de 86 anos, uma das primeiras travestis brasileiras a se tornarem um símbolo pop. Membro das Divinas Divas, ela causou furor no Rio de Janeiro com o show de strip-tease masculino "A Noite dos Leopardos" nas décadas de 1980 e 1990, que chegou a ser visitado por Madonna.

Em seguida, a passarela foi invadida também por estampas de leopardo, zebras e flores em calças, jaquetas, camisas, saias e maiôs asa-delta, entre outras roupas. Peças de couro criadas por Patrícia Vieira também foram usadas nas composições, assim como grafismos em preto-e-branco e conjuntos adornados com paetês enormes.

O clima nostálgico e a ânsia por um futuro de autoexpressão sem fronteiras fizeram do desfile um acontecimento cinematográfico que hipnotizou a plateia, assim o reconhecendo com aplausos e urros —estes, sim, ao contrário dos da Led— espontâneos. O que se viu no palco foi uma colagem viva de iconografias dos anos 1950 aos 1980.

José Loreto, usando uma sunga azul cavada e uma camisa azul florida, sem camiseta sob esta peça, desfilando para a The Paradise na São Paulo Fashion Week
José Loreto desfilando para a The Paradise na São Paulo Fashion Week - Ze Takahashi via Agência Fotosite/Divulgação

A estatuesca Silvia Pfeiffer, relembrando os tempos de modelo de quatro décadas atrás, compareceu com grandes brincos de bolas espelhadas, uma camiseta transparente e listrada, e uma calça coberta por paetês prateados que deram à atriz a aura de uma diva. Aos 65 anos, ela ainda cativa com sua silhueta angulosa e misteriosa.

José Loreto, por sua vez, fez a alegria da plateia ao mostrar o corpo musculoso em dois looks diferentes —em um, o ator usou uma sunga cavadíssima, que deixou o bumbum à mostra. Ele sorriu e fez esvoaçar a camisa com bolinhas coloridas. Loreto se divertiu tanto quanto o público com a sua atitude hedonista na passarela, bem como a lendária top model Veluma, que deu pulinhos e distribuiu beijinhos. Jonathan Azevedo, Pathy de Jesus, Betty Prado e Monique Evans foram outros nomes conhecidos que deram corpo à utopia retrô da etiqueta de Thomaz Azulay e Patrick Doering.

A trilha sonora foi uma maçaroca barulhenta e quase incompreensível de hits do pop nacional e internacional —uma espécie de tecido elástico sendo esticado ao máximo para cobrir incontáveis referências, assim como as estampas exibidas. Ao fim do desfile, todo o elenco —que exibiu um total de 55 looks— dançou ao som de "Sweet Dreams (Are Made of This)", dos Eurythmics. Alguns sonhos só podem ser realizados na passarela.

A semana de moda de São Paulo segue até este domingo (28), em diversos locais da capital paulista. Um dos desfiles bastante esperados é o de Walério Araújo, que mostrará uma coleção em homenagem a Elke Maravilha. "Ela gostava de vikings, tapeçarias, armaduras. Elke ia à quitanda de bota, caftã e muita maquiagem", afirmou o estilista.

Colaborou João Perassolo

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