Tomie Ohtake expõe obras raras de modernistas como Di Cavalcanti e Volpi

‘A Coleção Imaginária’ reúne 200 peças de acervos privados e inclui ainda quadros de Tarsila do Amaral e Candido Portinari

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São Paulo

Várias casas coloridas estão concretizadas na superfície de uma tela. O pouco compromisso com volume sugere a fuga da terceira dimensão, enquanto o contraste de cores delimita as estruturas observadas. Fortes pinceladas na vertical e horizontal constituem as ruas de "Primeiras Fachadas", de Alfredo Volpi.

O quadro é considerado um dos primeiros da série do pintor, com sinais do que depois se consolidaria como seu estilo —a depuração das formas urbanas, com tendência ao abstracionismo geométrico.

'Fachadas', tela feita em 1950 por Alfredo Volpi - Jorge Bastos/Divulgação

Um pouco mais a frente é possível ver uma dezena de quadros em dimensões menores, considerados estudos do artista. Depois, algumas dessas pinturas iriam ocupar telas maiores —e mais caras.

"Ele não tinha dinheiro, então passava várias camadas de goma laca em cartões grossos para endurece-los como madeira", afirma Paulo Kuczynski, marchand que conviveu com Volpi até seu adoecimento, na década de 1980.

Atrás dos quadros, está a data escrita pelo negociante. "Volpi nunca escreveu uma data. Era supersticioso. Acho que tinha medo da morte", diz.

Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Candido Portinari, Lasar Segall, José Pancetti, Victor Brecheret, Flávio de Carvalho, Cícero Dias, Sérgio Camargo, Lygia Clark, Mira Schendel, Adriana Varejão. Esses são alguns dos 39 artistas com obras expostas na exposição "A Coleção Imaginária", sediada no Instituto Tomie Ohtake.

É parte do programa que busca dar acesso ao grande público a obras de artistas já consagrados —e que, por pertencerem a coleções particulares, raramente são exibidas.

É o caso dos mais de 200 trabalhos negociados por Paulo Kuczynski, durante mais de cinco décadas no mercado artístico. O primeiro quadro comprado pelo Marchand, no início de sua carreira, foi a fachada de Volpi —parcelado em seis vezes, como ele diz.

Um pouco à frente dos estudos é possível se deparar com a pintura de uma mulher em vermelho. É difícil separar o contorno de seu vestido do fundo de mesma cor. Ela segura uma flor branca.

Trata-se do retrato de Gilda Vieira, por quem Volpi foi apaixonado —e para quem pintou mais de 30 quadros—, exposto pela primeira vez ao público. Pintado em 1960 e parte de uma coleção particular desde então, sua existência foi divulgada por este jornal apenas em 1997.

"Temos dois panoramas contando uma mesma história —um pelo ponto de vista institucional e outro particular e íntimo", afirma o curador Jacobo Crivelli Visconti.

A coleção chama atenção pela quantidade de obras disponíveis de cada artista. Di Cavalcanti tem 19 trabalhos expostos, entre eles "Conversa no Cais", de 1938, e "Praia" de 1944, em que cenas do cotidiano brasileiro são protagonizadas por personagens de formas sinuosas, traço próprio do estilo do artista.

Outras obras que não são pinturas à óleo também estão à mostra, como a aquarela "Cena de Samba" e "Bordel", desenhada com pastel sobre cartão. Em um mesmo plano bidimensional, Di Cavalcanti retrata cenas que ocorrem em vários quartos de um mesmo bordel, ao mesmo tempo. Na mesma sala, em parede oposta, encontram-se sete aquarelas de Cícero Dias, modernista que iniciou sua intensa produção na década de 1920.

As obras do modernista Ismael Nery, que teve sua produção interrompida de forma trágica aos 34 anos pela tuberculose, também ganham destaque pela quantidade. "Seu trabalho tinha um diálogo intenso com produções europeias e, ao mesmo tempo, uma marca conceitual própria", afirma a pesquisadora e crítica Mirtes Oliveira.

Ela ressalta a possibilidade de observar as nuances de cada artista e compará-las àquelas de seus contemporâneos, presentes no mesmo espaço. "A quantidade permite ao publico avaliar com mais informações a pertinência desses artistas e sua qualidade, evitando estereótipos e a cristalização baseada em apenas uma obra", argumenta.

Na parede oposta às mais de 30 obras de Alfredo Volpi, que sintetizam a trajetória estética do pintor ítalo-brasileiro, estão dispostas 13 panorâmicas de José Pancetti, chamado de "pintor-pintor" pela curadora Denise Mattar —definição ligada à sua forma de produzir, ao ar livre, sem desenho e usando apenas carvão para alguns apontamentos antes de pegar o pincel.

Em "Marinha de Saquarema", de 1955, vê-se dois barcos de pescador em uma praia, com uma igreja no topo de um morro, pequena, ao fundo. Disposta ao lado está "Igreja Nossa Senhora de Nazaré", de 1955, o edifício da pintura vizinha, agora destacada pela aproximação. "Um dia ele sentava em um lugar, no outro sentava 50 metros à frente. E assim foi pintando o litoral brasileiro", conta Kuczynski.

O pintor-viajante passou por diversas cidades, dedicando-se a transmitir em suas telas recortes das paisagens litorâneas que observava —também com tendência a abstração pela simplificação do contorno das formas, perceptível em "Mãe e Filha na Praia", de 1956. Alguns de seus momentos de produção foram documentados pelo fotografo Pierre Verger quando ele estava na Bahia.

Outros artistas estão expostos com obras individuais ou em menores quantidades. É o caso do modernista Flávio de Carvalho, considerado um dos mais fortes coloristas brasileiros, com "De Manhã Cedo", de 1931, em que uma mulher nua é representada por fortes pinceladas e pouco contorno.

Em "Duas Mulheres", de 1938, de Cândido Portinari, duas moças representadas em tons de cinza e azul parecem se conduzir em uma dança. Separando as salas de pinturas, encontram-se ainda sete estátuas de Victor Brecheret, entre elas "Figura de Mulher Inclinada", de 1930, representação feminina de dois metros esculpida em granito. Alguns contemporâneos, entre eles Lygia Clark, Adriana Varejão e Leonilson, somam mais de uma dezena de obras expostas.

Apesar de ainda restrito àqueles com maior poder de compra, a negociação de obras fora dos salões —principal ambiente de comercialização artística até a metade do século 19— intensificou a circulação de arte entre diferentes públicos, processo ligado também à urbanização. Parte dessa narrativa é contada no Tomie Ohtake.

"A exposição é efêmera e uma oportunidade única de acessar coleções particulares que tem uma trajetória de mais de cem anos", afirma Visconti.

A Coleção Imaginária

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