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'Travessia' de Gloria Perez fez mistureba de deepfake, DNA duplo e mesa espírita virtual

Conhecida por mesclar tramas mirabolantes com tecnologia, autora pôs até brigadeiro como elemento narrativo

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São Paulo

"Eu estava ali, fazendo a mistura do brigadeiro e ouvindo essa história toda", diz Bia, interpretada por Clara Buarque na novela "Travessia". "Vendo o leite condensado se fundindo com o chocolate, eu tive um insight. E se ela tivesse um gêmeo ou uma gêmea? Que não nasceu. Eram dois fetos. Um não vingou, mas se fundiu com ela. Faz sentido isso, gente?".

E foi assim, enquanto preparava uma panela de brigadeiro, que a jovem estudante de biologia teve um insight e descobriu que sua ex-rival Brisa, papel de Lucy Alves, pode ter duas cargas genéticas distintas em seu organismo. Brisa, de fato tem quimerismo, uma condição raríssima, o que explica o fato de seus testes de DNA apontarem erroneamente que ela não é a mãe de seu próprio filho.

Grazi Massafera posa ao lado de Jade Picon nos bastidores de "Travessia"
Grazi Massafera ao lado de Jade Picon nos bastidores de 'Travessia' - GShow/Bella Pinheiro

Essa mistura de ciência, tecnologia e brigadeiro é típica de Gloria Perez. A autora reúne duas características marcantes: a primeira é ser discípula de Janete Clair, de quem foi assistente. Criadora de megassucessos da década de 1970 como "Irmãos Coragem" e "Selva de Pedra", Janete sempre mandou a verossimilhança às favas quando sentia a necessidade de "voar". Gloria faz o mesmo, apesar de o público de hoje ser muito mais informado e exigente que o de 50 anos atrás.

A outra característica de Gloria Perez é o apreço por novidades tecnológicas. Sua novela "Explode Coração", exibida pela Globo entre 1995 e 1996, marca a primeira aparição da internet na teledramaturgia brasileira. A web ainda era tão nova que precisava ser chamada de "rede mundial de computadores", para o espectador entender do que se tratava.

Essa receita costuma dar certo, principalmente em termos de Ibope. A autora acumula êxitos na faixa das 21 horas da Globo. Mas alguma coisa desandou em "Travessia", que entrará para a história como um dos títulos de menor audiência de seu horário.

Parte desse relativo fracasso pode ser atribuída ao elenco. A estreante Jade Picon atraiu muitas críticas por seu fraco desempenho, principalmente nos primeiros meses da novela. Cássia Kis chegou a ser cancelada nas redes sociais por suas declarações reacionárias.

Mas a maior qualidade ou defeito de qualquer novela é sempre o texto, a história, o desenrolar da trama. E "Travessia" teve um desenrolar particularmente confuso.

A protagonista Brisa se vê obrigada a fugir de seu Maranhão natal depois que um vídeo deepfake coloca seu rosto no corpo de uma ladra de bebês. Uma vez no Rio de Janeiro, a moça não entra em contato com sua família —é como se telefones ou computadores nunca tivessem existido.

Ideias mirabolantes foram surgindo ao longo do caminho, para serem esquecidas pouco depois. A discussão em torno dos deepfakes, um fenômeno que pode provocar considerável estrago político e social, se esvaziou logo, pois o autor do vídeo que incriminou Brisa é um adolescente.

A própria revelação do DNA duplo da mocinha foi deixada de lado depois do capítulo desta terça-feira (2), em que Bia teve seu insight.

Gloria Perez reclama que não houve tempo de fazer as pesquisas necessárias para que "Travessia" tivesse pé e cabeça. A novela talvez não saísse tão incongruente se a autora trabalhasse com uma equipe.

Mas Gloria insiste em escrever tudo sozinha, à moda antiga. Seus roteiros costumam vir com erros de formatação e diálogos com palavras repetidas, dando a sensação de que ela não os relê antes de enviá-los à emissora.

Além disso, os tempos mudaram. Qualquer furinho na trama é imediatamente percebido pelo espectador atual, e amplificado nas redes sociais. "Travessia" foi colocada sob uma lupa, e recebeu um tratamento que se tornou ainda mais áspero depois que a própria autora passou a retrucar as críticas dos internautas.

Para o último capítulo, exibido nesta sexta-feira (5), Gloria aprontou mais uma das suas. Chiara, vivida por Jade Picon, conversa com Débora, sua falecida mãe, feita por Grazi Massafera. As duas não entram em contato numa sessão espírita, mas num ambiente de realidade virtual —uma tecnologia que, por enquanto só existe em séries de ficção científica como "Black Mirror".

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