Como a artista Helena Almeida fez do próprio corpo vetor de emoções e protestos

Instituto Moreira Salles de São Paulo inaugura exposição panorâmica da grande dama da arte portuguesa

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Detalhe de 'Tela Habitada', fotografia de 1976 de Helena Almeida Coleção CAM/Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa

São Paulo

Numa série de fotografias de Helena Almeida, a artista é encurralada num dos cantos do seu ateliê por uma grande onda de pigmento preto. Em outra, ela dá uma pincelada em azul no ar e depois guarda o rabisco no bolso do jaleco. Numa terceira, levanta a parte de baixo do vestido enquanto fica na ponta do pé esquerdo, na sola do qual aparece uma mancha vermelha.

"O corpo é o meu instrumento de trabalho. Como se fosse um quadro, ou uma pintura, é o meu meio. Sem qualquer preocupação com a evolução do meu corpo, a idade não tem importância, nem sequer a transformação que nós sofremos através dos anos —ficamos mais velhos", disse à artista numa entrevista de 2005 a uma jornalista de um canal de televisão pública de Portugal.

Fotografia do tríptico 'Estudo para um Enriquecimento Interior' - Divulgação/Coleção Altice, Lisboa

"A única coisa que eu de fato penso que gostaria de manter é que meu corpo me obedeça sempre, a maleabilidade do corpo, que obedeça aquilo que eu quero fazer, que às vezes são poses um pouco mais difíceis."

A investigação de si própria pela fotografia e por movimentos do corpo que remetem à performance são elementos centrais das preocupações estéticas da portuguesa, nome de exportação de seu país no cenário artístico da segunda metade do século 20 e que ganha agora, pela primeira vez, uma exposição individual no Brasil.

"Fotografia Habitada" reúne no Instituto Moreira Salles de São Paulo um conjunto de 120 obras que repassam a carreira de Almeida entre o final da década de 1960 e 2018, ano de sua morte. É uma mostra inédita, organizada por Isabel Carlos, que trabalhou por décadas com a artista, de quem se tornou amiga.

O período coberto pela exposição, disposta em ordem cronológica, compreende o desenvolvimento da linguagem que tornou Almeida conhecida e mostrada internacionalmente, numa carreira que coincide com a democratização de Portugal após o fim da ditadura.

Depois de uma fase dedicada à pintura, fruto da formação da artista em Lisboa e em Paris, a partir de 1969 Almeida se volta às fotografias em preto e branco, sobre as quais intervém com elementos diversos como manchas de tinta e fios de crina de cavalo.

Na série "Estudo para um Enriquecimento Interior", de 1977, a artista se representa comendo uma mancha de tinta azul. A cor, bastante frequente em seus trabalhos, é uma fusão das variações cobalto e marítimo, uma mistura criada por ela para transmitir a ideia de energia, de acordo com a organizadora da mostra. Almeida negava qualquer relação de seu azul com o azul desenvolvido pelo artista francês Yves Klein, que inclusive patenteou sua invenção.

Mais adiante na exposição, na sequência de imagens "Desenho Habitado", vemos a mão da artista traçando um risco preto à caneta na primeira tela, enquanto no quadro ao lado ela pinça um delicado fio também preto costurado no final do rabisco, fazendo com que o desenho saia do plano e continue no espaço.

Alguns dos trabalhos de Almeida têm contornos políticos, numa resposta à ditadura do Estado Novo, regime no qual a artista nasceu e foi criada até os 40 anos. Na segunda sala da exposição, dedicada aos sentidos, está uma de suas obras mais famosas, uma série fotográfica onde vemos a palavra "ouve" escrita sobre a boca da artista como se as letras costurassem seus lábios, numa alusão à censura.

"Este trabalho é também uma reivindicação do lugar da mulher numa sociedade patriarcal", afirma a organizadora da mostra, lembrando que, até 1974, quando a Revolução dos Cravos colocou fim à ditadura de Salazar, as portuguesas precisavam de autorização dos homens para abrir conta em banco ou viajar para o exterior.

'Seduzir', de 2002 Obra de Helena Almeida - José Manuel Costa Alves/Coleção CAM - Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa

Neste contexto, o pai de Almeida, o escultor Leopoldo de Almeida, foi contratado pela ditadura para criar monumentos exibidos em espaços públicos, a exemplo do Padrão do Descobrimento, um dos símbolos do Estado Novo instalado em Lisboa. Mas sua filha tinha visão bastante progressista e encarou o final do regime "como uma profunda libertação", afirma a organizadora.

Almeida se insere numa linhagem de artistas mulheres de projeção internacional vindas de Portugal, como a pintora Paula Rego e a escultora Joana Vasconcelos. Seu trabalho, contudo, é mais intimista, e tem um universo distinto das telas de teor feminista daquela e das obras em grandes dimensões desta. A artista representou seu país duas vezes na Bienal de Veneza, em 1982 e 2005.

Conforme as décadas passavam e seu trabalho evoluía, o corpo de Almeida passou a aparecer mais e mais nas obas —ela posava com vestimentas neutras e quase nunca mostrava o rosto. Quem a fotografava era seu marido, o arquiteto Artur Rosa, com quem tinha uma intimidade que dizia não ser possível caso contratasse um assistente para operar a câmera. Os retratos eram feitos no ateliê da artista em Lisboa, mesmo espaço de trabalho que pertenceu a seu pai, de quem era modelo quando criança.

Na fase avançada de seu trabalho, que se estenderia até sua morte, o corpo começa a virar quase uma escultura, afirma a organizadora. A artista interage com pouquíssimos elementos —um banco, pigmentos de tinta, sapatos de salto alto, um saco de pano—, em posições rascunhadas por ela milimetricamente antes de as fotografias serem tiradas. Depois de revelados os negativos, antes da impressão das fotografias, Almeida também determinava o corte exato da imagem.

Limite e contenção parecem ser as palavras de ordem de seu trabalho. "Uso aquilo que tenho. Quanto mais restrito for, menos eu tenho e maior a intensidade que posso dar ao trabalho. É depuração, vai concentrando em intensidade", afirmou artista à televisão portuguesa.

Fotografia Habitada, Antologia de Helena Almeida, 1969-2018

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