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Artes Cênicas

São Paulo Companhia de Dança mostra bailarinas que voam sobre o palco

Nova temporada do grupo paulista combina o repertório clássico de 'Giselle' com estreia da obra 'I've Changed My Mind'

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São Paulo Companhia de Dança abre a temporada 2023, intitulada 'Labirintos em Movimento' Iara Davies e Charles Lima

São Paulo

No ensaio "De l'Allemagne", escrito nos anos 1830, o poeta alemão Heinrich Heine classificou a dança como a arte dos espíritos aéreos. A linguagem do balé seria determinada por sua natureza etérea, intangível. Heine personificou a sua ideia, evocando no texto a imagem das Willis, jovens noivas que morreram antes do casamento. Suas almas atormentadas não conseguiram descansar, porque não satisfizeram em vida o amor pela dança.

Seres da mitologia eslava, as Willis seriam encontradas no balé "Giselle", que estreou em Paris, na França, em 1841. Quase 200 anos depois, a obra de Jules Perrot e Jean Coralli —com música de Adolphe Adam— resta inamovível no repertório romântico. A remontagem do segundo ato por Lars Van Cauwenbergh inaugura, nesta quinta-feira, a nova temporada da São Paulo Companhia de Dança, em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso.

São Paulo Companhia de Dança abre a temporada 2023, intitulada 'Labirintos em Movimento' - Iara Davies e Charles Lima

Sob direção de Inês Bogéa, os três programas que constituem "Labirintos em Movimento" apostam nos contrastes entre estilos. "Giselle - Ato 2", por exemplo, se combina com "Umbó", criação de Leilane Teles assentada na herança cultural de matriz africana. Neste ano, a terceira semana de apresentações finda com "I’ve Changed My Mind", obra inédita do israelense Shahar Binyamini, que se une a "Ibi –Da Natureza ao Caos", de Gal Martins, e a "Suíte de Paquita" —do balé de Marius Petipa, Édouard Deldevez e Ludwig Minkus, concebida em 1846.

Passado tanto tempo, o rastro de fantasmagoria das Willis ainda traduz o espírito criativo do balé. "Giselle" conta a história de uma jovem que se apaixona por Albrecht, nobre disfarçado de camponês. Traída por ele, Giselle, que tem coração frágil, morre. No segundo ato, Albrecht ruma para o mundo dos mortos e tenta o perdão de sua amada, sendo atacado pelas Willis. Giselle, no entanto, protege Albrecht, perdoando a sua traição.

Na remontagem da companhia paulista, a paisagem romântica é adaptada para a realidade brasileira. A natureza intocada onde virgens passeiam ao luar ganha contornos de uma floresta amazônica. De todo modo, lá estão os cinco solos de Myrtha, rainha das Willis, o "pas-de-deux" de Giselle e Albrecht e o redemoinho de noivas que tentam matá-lo.

Se Heine identifica o balé como a arte dos espíritos aéreos, a bailarina executa, na obra, os chamados movimentos aspiracionais. Em cena, ela tenta levitar, passando a impressão de que está acima do palco. A segunda parte de "Giselle" constitui o ato branco: seção do balé em que personagens mitológicos se apresentam numa atmosfera etérea, representada pela cor branca, dos tutus e da fumaça cobrindo a paisagem.

Na segunda semana de apresentações, a companhia paulista apresenta "Les Sylphides", obra-prima do russo Michel Fokine, que estreou em 1909, em Paris. Fokine, para quem o balé deveria ser como a poesia, usou as mesmas premissas estéticas encontradas no segundo ato de "Giselle" e mudou a história da dança, inaugurando o primeiro balé abstrato da história. A remontagem de Ana Botafogo expõe o fim da narrativa: um poeta dança rodeado por sílfides —musas que habitam o ar, segundo a mitologia germânica.

Na ausência de enredo, a dança passa a valer por si, isto é, a coreografia tem significado autônomo. No mundo pré-Balanchine, Fokine desvelava a ideia de balé neoclássico. Em "Les Sylphides", a coreografia nega o espalhafato do mundo romântico, preferindo a simplicidade gestual, que engendra um mundo imanente dentro da estética branca.

Não à toa, a obra é também uma homenagem ao balé romântico, a começar pela música. Na estreia, "Les Sylphides" ainda se chamava "Chopiniana". A criação de Fokine é motivada por peças do compositor polonês Frédéric Chopin, símbolo do romantismo musical. Em destaque, está o "Noturno, Opus 32, Nº2", composição clara e derramada.

Na mesma noite, os bailarinos dançam "Partita", terceira criação do americano Stephan Shropshire para a companhia. A obra é uma extensão da temática mitológica à dança contemporânea. A coreografia se inspira na tela "Paisagem com a Queda de Ícaro", concebida nos anos 1550 por Pieter Bruegel.

O quadro retrata o momento final do mito de Ícaro. Segundo os gregos, ele conseguia voar graças às asas feitas com cera de abelhas, dadas por seu pai, Dédalo. Por ter voado muito perto do sol, as asas derreteram, e Ícaro caiu no fundo do mar. O poema homônimo, escrito em 1960 pelo americano William Carlos Williams, recriou em versos a tela de Bruegel e serviu de mote para a coreografia. "perto/ da costa/ houve/ uma pancada quase imperceptível/ era Ícaro/ que se afogava."

Em "Partita", um bailarino reescreve cada letra do poema, em diálogo com os gestos dos demais intérpretes. É um contraste entre o mundo romântico de Heine e a objetividade modernista de Williams, cujo poema se limita a descrever a tragédia.

Do mesmo modo, os contrastes da nova temporada da SPCD evidenciam as características dos diferentes estilos de dança. O desejo de formar plateias não anula a natureza da produção coreográfica do tempo presente. A dança tende a se distanciar do didatismo em voga nas artes plásticas ou na literatura. É uma arte que não oferece respostas, mas incomoda na espontaneidade de sua linguagem: o corpo em movimento. Se a coreografia é autônoma, o espectador passa ao largo de dogmatismos na liberdade de sua interpretação.

Por fim, "Labirintos em Movimento" expõe os sucessivos discursos sobre a mulher que o balé produziu ao longo da história —e aqui entramos num debate candente na dança. É um pensamento ambíguo. Poderosas, as Willis podem ser bruxas ou musas.

No século 20, Balanchine desvelou as ambivalências da representação da mulher na dança, repetindo a frase "balé é mulher". Ele partia daquele olhar estereotipado do romantismo para glorificar o sexo oposto. Vislumbrava em "Giselle" ou em "Les Sylphides" uma promessa de beleza para o século que se iniciava.

Mas agora a condição humana é mais melancólica. Já não existem promessas. Sabemos que o belo é uma ficção.

São Paulo Companhia de Dança

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