O último livro daquela que ficou conhecida como Trilogia de Jesus é um estranho encerramento: ao mesmo tempo em que apresenta um desfecho um tanto anticlimático, também aprofunda os enigmas dos livros anteriores.
O projeto de J.M. Coetzee, claro, é justamente esse: jogar com a ambiguidade. Todos os elementos são duvidosos e oscilantes.
No primeiro volume, "A Infância de Jesus", dois desconhecidos, um homem, Simón, e um menino pequeno, David, se encontram em um navio cujo destino é a cidade de Novilla. Simón se torna o guardião de David nessa vida além-mar —ressurreição, imigração, quem sabe. Simón encontra uma mulher, Inés, para ser a mãe do menino, e os três viram uma estranha família. Acompanhamos, assim, a infância de David.
No segundo, "A Vida Escolar de Jesus", David é matriculado em uma instituição peculiar, e acompanhamos, então, sua vida escolar. Não é nenhuma surpresa, portanto, o que vai acontecer em "A Morte de Jesus".
Não se trata de uma narrativa em que o herói morre depois de passar por mil aventuras, ou, o que soa mais moderno, de atingir a maturidade ou o autoconhecimento. Ao contrário: David não chega a desabrochar. Morre aos dez anos, vítima de uma doença misteriosa.
Os sentimentos e motivações dos personagens são desconhecidos, com exceção dos de Simón. É possível interpretá-los de muitas maneiras.
A figura de David é um bom exemplo de como os paradoxos operam na trilogia. Embora seja uma figura central e seu desenvolvimento seja assinalado nos títulos, é impossível negar que o protagonista é, na verdade, Simón. Além disso, a associação implícita de David com Jesus sugere algum tipo de excepcionalidade —o próprio menino se vê como um ser iluminado, algo que os adultos não desencorajam.
Sua personalidade, no entanto, é repleta de traços sinistros. Outros personagens falam de um David "generoso, bom, atencioso", mas, como só temos acesso às interações do menino com Simón, é difícil enxergar essa dimensão benevolente.
David desponta como uma criaturinha intransigente, voluntariosa e egocêntrica —é esquisito listar os defeitos de alguém que acabou de morrer, sobretudo quando se trata de uma criança. Pouco importa que seja uma personagem de ficção.
David não pede: ordena. A realidade tem de se virar para se dobrar às suas certezas, que não podem ser contraditas. É como se Coetzee exacerbasse a própria definição de húbris a partir de um garotinho, que desponta como um dos personagens mais intragáveis da literatura. (Que Deus o tenha.)
Mas a trilogia não admite uma leitura lógica, racional ou literal. Ver em David uma criança caprichosa é ignorar várias outras dimensões da trama. O mesmo pode ser dito da visão oposta, ou seja, a que toma David por um messias, e de qualquer visão intermediária: sempre haverá um elemento para contradizer determinada leitura.
Não é que haja diferentes interpretações —é mais do que isso. A trilogia questiona a própria ideia de interpretação. Eis a genialidade de Coetzee.
A trilogia é acima de tudo um tributo à imaginação humana, ou à imaginação como legado. Da narrativa bíblica à tradição grega —tanto mitológica quanto filosófica—, Coetzee se vale de múltiplas heranças. A própria história do romance é convocada; o leitor reconhece ecos de Dostoiévski, ao passo que a homenagem a "Dom Quixote" é escancarada. Nada de novo aí: a literatura de Coetzee sempre brincou com a intertextualidade.
O sul-africano evoca tudo isso utilizando os procedimentos do realismo, elaborando um mundo parecido com o nosso e criando uma sucessão de cenas e diálogos críveis. Isso favorece uma interpretação mais literal, que não só é a mais difícil de ser sustentada como também é a mais pobre.
Vale notar que a personalidade insuportável do menino (que descanse em paz) é apresentada em contraste com a de Simón. O homem é um lógico; guiado pelas normas da razão, tem as paixões sob controle. Já o menino é guiado pelas emoções e pela imaginação feroz.
O que Coetzee sugere é que o leitor se deixe levar, se conseguir superar a própria racionalidade já solidificada, pelo menino.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.