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Filmes Festival de Cannes

Bombeiros nus de 'Fogo-Fátuo' movem filme entre o vulgar e o erudito

Longa de João Pedro Rodrigues, exibido em Cannes, critica elite em trama de homem que passa vida a limpo antes de morrer

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Fogo-Fátuo

  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Mauro da Costa, André Cabral, Cláudia Jardim
  • Produção Portugal e França, 2022
  • Direção João Pedro Rodrigues

Travessa da Queimada, 2069. É num futuro ainda distante que começa este invulgar "Fogo-Fátuo", longa do cineasta português João Pedro Rodrigues, o mesmo do ótimo "O Ornitólogo", de 2016.

Uma sombra encobre a placa, com um barulho de espaçonave ao fundo. O menino Sancho observa da janela o movimento no céu. É uma maneira criativa e barata de imaginar um futuro.

Cena do filme "Fogo-Fátuo", de João Pedro Rodrigues
Cena do filme 'Fogo-Fátuo', de João Pedro Rodrigues - Divulgação

Estamos no quarto onde o envelhecido príncipe Alfredo, interpretado, nesse tempo, por Joel Branco, espera sua morte. Ouvimos uma flatulência. A senhora que entra no quarto pensa ser uma travessura de Sancho, que agora brinca ao lado do príncipe, seu tio-avô, com um caminhão de bombeiro.

Em Portugal, a piada é mais clara. "Dar o peido-mestre" é uma maneira chula de dizer "morrer". Em seu cinema, podemos esperar de tudo, do vulgar ao erudito sem escalas.

Na trama, voltamos a 2011, quando Alfredo é um adolescente, vivido pelo ator Mauro da Costa. Ele está com o pai num bosque, até que um grupo de crianças o cerca a cantar. Estamos mais uma vez num terreno caro a Rodrigues, o da imaginação.

O letreiro que surge em seguida diz "alguns anos depois", mas a menção ao grande incêndio do Pedrógão Grande nos faz saber que estamos em 2017, com Alfredo ainda jovem, mas já com barba no rosto.

Sua mãe, claramente a líder da família, se irrita com o jantar aos olhos de um público. Fecha a porta na nossa cara, abrindo um ano depois, quando acompanhamos o príncipe Alfredo comunicar aos pais que gostaria de ser bombeiro. Logo mais, será ele a fechar a porta, após percebemos que a sala de jantar foi invadida por fumaça.

Só então, com 18 minutos, surge o nome do filme, acompanhado do anúncio de que se trata de uma fantasia musical. Nos minutos seguintes, os créditos continuam aparecendo enquanto vemos bombeiros treinando num pátio.

Em seguida, vemos Alfredo querendo entrar na desejada corporação. É entrevistado pela comandante, interpretada brilhantemente por Cláudia Jardim, no papel mais rasgadamente cômico do filme.

Uma vez admitido, Alfredo se apaixona por Afonso, bombeiro um pouco mais experiente interpretado por André Cabral. Afonso é negro, o que possibilita a Rodrigues fazer humor com o racismo, mas jamais caindo no desrespeitoso ou no politicamente incorreto.

Os bombeiros brincam de quadros vivos, aproveitando a conhecida predileção de Alfredo pela história da arte. Os jogos homoeróticos aludem ao imaginário da profissão de forma inteligente —o poste de escorregar, a mangueira, o uniforme, o vestiário, tudo é transformado em motivo erótico.

Alfredo e Afonso fazem amor no parque. Seus órgãos sexuais são substituídos por próteses claramente artificiais. Desenvolvem depois outros jogos eróticos. Nos slides, diversos tipos de falos são nomeados a partir de locais portugueses.

Percebemos então que a imaginação dá as mãos ao absurdo e se cria, como que num passe de mágica, uma bela e instigante obra de pouco mais de uma hora de duração.

Duração não tem a ver com qualidade, mas é salutar ver Rodrigues desenvolver tantas ideias, algumas cômicas, outras provocadoras, em tão pouco tempo.

O cineasta parece criticar a elite portuguesa ao salientar uma oposição entre monarquia e república. Põe nas bocas dos personagens dizeres típicos de uma burguesia alienada. "Escumalha socialista", reclama a mãe ao ver notícias do incêndio. "Não seja republicano", diz a governanta para o menino Sancho em 2069.

Se encararmos "Fogo-Fátuo" como a história de um homem que passa a limpo alguns momentos de sua vida enquanto agoniza, chegamos a uma versão curiosa e anárquica de "O Espelho", de 1975, longa mais pessoal de Andrei Tarkovski.

Ideias são repetidas, espelhadas em outros personagens e situações. O menino Sancho cantando a música que o jovem Alfredo havia aprendido no passado, o mesmo Sancho repetindo a vontade de ser bombeiro de seu tio-avô, entre acontecimentos mais sutis.

Se observarmos o filme como um comentário sobre o mundo após a Covid-19, a comédia dá lugar à tristeza e a crítica à humanidade se torna mais evidente.

A chave é o último diálogo entre Alfredo e Afonso. A vida é um jogo de aparências em que um verdadeiro amor pode ser sabotado por papéis predeterminados pela sociedade.

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