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Fabiane Guimarães acerta ao usar ficção para explorar tabus

Protagonista de 'Como se Fosse um Monstro' é mulher pobre que aluga seu corpo, mas é dona de sua história

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Como se Fosse um Monstro

  • Preço R$ 54,90 (160 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Fabiane Guimarães
  • Editora Alfaguara

A história narrada é mais importante do que a forma de contar em "Como se Fosse um Monstro", novo livro da escritora Fabiane Guimarães, goiana de 32 anos que já foi finalista dos prêmios São Paulo e Candango de literatura.

mulher loira de cabelo encaracolado coloca a mão no bolso de casaco branco sobre roupas claras
A escritora Fabiane Guimarães, autora de 'Como se Fosse um Monstro' e 'Apague a Luz se For Chorar' - Alexia Fidalgo/Divulgação

Na obra, é como se a linguagem fosse propositalmente simples para não chamar mais atenção do que o enredo, ponto forte da prosa.

O romance trata da barriga de aluguel, prática que só é autorizada no país nos casos chamados de "barriga solidária", quando há parentesco de até quarto grau entre a mulher que cederá o útero com o pai ou a mãe biológicos, sem transação de dinheiro.

Uma das personagens de "Como se Fosse um Monstro" opta por um aborto ao se deparar com uma gravidez indesejada. Tanto uma prática como outra esbarram em julgamentos de ordem moral e travas na legislação brasileira, que ainda impede o livre exercício dos direitos reprodutivos das mulheres.

Tabus parecem ser temas desencadeadores para Guimarães. No romance anterior, "Apague a Luz se For Chorar", de 2021, a autora tratou do tema da eutanásia —de animais abandonados, mas não só.

A morte assistida, como o aborto e a barriga de aluguel, é regulamentada em diversos países, mas permanece proibida no Brasil. O avanço de bancadas cada vez mais conservadoras no Legislativo indica dificuldades em debater tais assuntos sem interferência religiosa ou ideológica.

Mas se a realidade impõe amarras às decisões de ter ou não um filho, pagar por uma gestação terceirizada e até optar pela eutanásia diante de uma doença terminal, a ficção é um campo sem limites para imaginar suas causas e consequências.

É precisamente o que faz Guimarães em "Como se Fosse um Monstro". O romance conta a história de Damiana, uma jovem que deixa a casa pobre da família, em uma área rural de Goiás, para trabalhar como doméstica em Brasília. Na capital federal, ela passa a morar no local de trabalho, a mansão de um casal que não demora a recrutar a moça como barriga de aluguel.

A narrativa de Guimarães não é piegas. O texto quase emula uma grande reportagem em certas passagens. Isso porque uma das personagens é Gabriela, uma jornalista que viaja para Goiás para encontrar Damiana. Ao leitor, cabe inicialmente saber só que Gabriela quer escrever um livro com a história da barriga de aluguel mais produtiva dos anos 1990 que se tem notícia no país.

A abertura do livro lembra o primeiro parágrafo de uma boa reportagem, ao apresentar sua personagem principal: "Damiana sorria com as mãos na boca. É que meus dentes não são bons, nunca foram, e cansei de tentar arrumar, explicou já ao abrir a porta". Mas logo na sequência se cometem algumas adjetivações cansativas: "Andava encolhida e devagarzinho, feito um passarinho".

A narração onisciente funciona para revelar aquilo que se pretender ocultar. Por exemplo, quando o narrador expõe hábitos pouco higiênicos do casal rico que emprega Damiana.

"Se havia uma constatação a ser feita, logo nas primeiras e solitárias semanas de trabalho, era que o casal não tinha muito apego à higiene. (…) Havia cracas na janela do banheiro; os ralos das nas pareciam um buraco negro a sugar cabelos e pedaços de unhas; ninguém lavava a mão antes ou depois das refeições".

Damiana é, acertadamente, a protagonista do romance narrado em terceira pessoa. A jornalista Gabriela, porém, se manifesta em primeira pessoa ao final do livro, quando revela suas motivações. A tomada de poder é justificada e na medida certa. Não é o mesmo que ocorre no romance anterior de Guimarães.

Em "Apague a Luz se For Chorar", a protagonista é Cecília, uma veterinária filha única e cheia de privilégios. Ela é bem menos interessante do que o meio-irmão gay Caio, abandonado na infância pelo pai biológico e abusado pelo padrasto. Adulto, ele se prostitui.

Caio é um personagem mais complexo e merecia mais espaço na trama. É como se a justiça fosse feita neste segundo romance —um bom romance, aliás— quando Damiana, mulher pobre que aluga seu corpo, é dona da sua própria história. É uma protagonista que não quer envolvimento com nenhuma das crianças que carregou no útero. Como diz a voz narradora, "não era exatamente falta de amor. Era indisponibilidade".

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