João Donato foi um anjo aglutinador para várias gerações da música brasileira

Apesar de viver num mundo só dele, feito de sons e ternura, o músico sabia de tudo que estava acontecendo ao seu redor

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Rodrigo Faour
Rio de Janeiro

A trajetória de João Donato, que morreu nesta segunda-feira, é uma das mais imprevisíveis da história da música brasileira.

Vindo do então longínquo Acre para o Rio de Janeiro jovem, ele escapou de ser aviador ao ser reprovado no exame de vista, passando a ser então incentivado pelo pai nos estudos da música.

O compositor João Donato quando completou 70 anos - Alexandre Campbell/Folhapress

Sua irmã Eneyda estudava piano e já fazia dupla com ele, que tocava acordeão, seu primeiro instrumento, com influências que iam de Luiz Gonzaga à música americana que vinha pelo rádio e pelo cinema, além dos discos de 78 rotações que tinha em casa de temas clássicos a orquestras como as de Stan Kenton.

Aos 15, Donato já estava enturmado no meio artístico. Foi então que participou de sua primeira gravação, num disco do flautista Altamiro Carrilho.

Com os anos 1950, veio a boemia de Copacabana, no Rio de Janeiro, época em que atuou em boates, como a Monte Carlo, de Carlos Machado, na Gávea, e orquestras de baile, como a de Napoleão Tavares, além da admiração por cantores como Lucio Alves e Emilinha Borba.

Foi a época em que fez amizade com os grandes artistas modernos de seu tempo, como Johnny Alf, Dick Farney, Dolores Duran, com quem teve um tórrido romance, e Tom Jobim, que o convidou para gravar seu primeiro LP solo na Odeon, "Chá Dançante", de 1956.

Mas sua carreira não decolava. Havia uma incompreensão geral com sua música por estar à frente do tempo. Até que, em 1959, ele foi para os Estados Unidos tentar a sorte. Eis que começa a segunda fase de sua carreira.

Por lá, percebeu que só teria espaço entre os músicos de jazz latino, como Johnny Martinez, Tito Puente, Cal Tjader, Eddie Palmieri e Mongo Santamaría, o que acabou por sacramentar seu estilo na direção do crossover da bossa nova com os ritmos caribenhos.

Em seguida, excursionou pela Europa com o amigo João Gilberto e, entre um disco e outro para o mercado brasileiro —como "Muito à Vontade", de 1962, época do hit "Sambou, Sambou", e "A Bossa Muito Moderna de João Donato e seu Trio", lançado em 1963—, gravou quatro para o mercado americano, entre 1965 e 1970, incluindo "Bud Shank/Donato/Rosinha de Valença", de 1965, "Donato/Deodato", que saiu em 1969, e o clássico "A Bad Donato", lançado em 1970.

O disco abria com "The Frog (O Sapo)", que tinha sido um sucesso três anos antes com o grupo de Sérgio Mendes e que, dali a quatro anos, viraria "A Rã", com letra de Caetano Veloso. Chris Montez também estourou por lá sua canção "Amazonas", com o nome de "Keep Talking".

Até sua volta ao Brasil, no final de 1972, motivada por um grande amor, Donato trabalhou com maestros como seu ídolo Stan Kenton e Nelson Riddle, músicos como Chet Baker, Herbie Mann e Wes Montgomery, além de Sergio Mendes e o Bossa Rio, Tom Jobim e Astrud Gilberto.

A terceira fase de sua carreira se dá justamente quando volta a morar no Rio, quando o radialista Adelzon Alves o reaproximou do samba e da cultura afro-brasileira, época que registrou dois álbuns, que se tornariam clássicos, agora também estreando como cantor. Eram os LPs "Quem É Quem", lançado em 1973, pelas mãos de Marcos Valle, e "João Donato", de 1975.

Por sugestão do cantor Agostinho dos Santos, Donato buscou letristas para seus temas instrumentais compostos até então, entrando em cena o irmão Lysias Ênio e Gilberto Gil.

Ele se tornaria ainda o arranjador e líder da banda de Gal Costa no álbum e show "Cantar", de 1974, destacando três composições suas —"A Rã", "Flor de Maracujá" e "Até Quem sabe". Em 1976, "Gal Canta Caymmi" era outro álbum da cantora, com show posterior, a contar com seus incríveis arranjos, destacando a regravação de "Só Louco".

Nesse meio tempo, arranjou para Nana Caymmi e Clara Nunes, com quem fez o sucesso "Conto de Areia", além de Fafá de Belém, que seria lançada num compacto em 1975 com duas canções da lavra de Donato —"Emoriô" e "Naturalmente".

Nos anos 1980, ele teve sucessos ou canções marcantes nas vozes de Nara Leão ("Nasci para Bailar"), Angela Ro Ro ("Simples Carinho"), Gal Costa ("Verbos do Amor"), Leila Pinheiro ("O Fundo"), Zizi Possi ("A Paz"), além de parcerias com Martinho da Vila ("Gaiolas Abertas" e "Daquele Amor nem me Fale"), Caetano Veloso ("Surpresa"), Chico Buarque ("Cadê Você") e até Cazuza ("Doralinda").

Como intérprete, gravou apenas o LP "Leilíadas", lançado em 1986, com todas as faixas dedicadas a uma única musa, Leila. Em 1990, deu o primeiro sucesso a Adriana Calcanhotto ("Naquela Estação") e outro a Gal ("Nua Ideia").

A nova década começava também com a redescoberta da MPB e da bossa nova pelos DJs britânicos, quando Donato foi sampleado e também esteve nas pistas europeias e americanas com "Bananeira", na voz dele ou de Emílio Santiago, "A Rã" e, mais tarde, com "Tudo Bem", "Cala Boca Menino" e a versão de "Cadê Jodel", do LP "A Bad Donato", que o Stereolab sampleou.

A grande reviravolta de sua carreira se daria, entretanto, de forma imprevisível. Foi a partir de 1996, quando retomou seu protagonismo como intérprete e começou freneticamente a gravar e fazer shows, sozinho ou com outros colegas de várias gerações, inclusive as mais novas, do hip-hop ao jazz, sem qualquer preconceito, se tornando um grande anjo aglutinador da música mais rica e criativa do país.

Incansável, entre 1996 e 2022 teve cerca de 25 álbuns lançados, alguns por selos americanos, como Elephant e Jazz Station, britânicos, caso do Far Out, e até japoneses, como o Rombling Records.

Sua carreira internacional também foi retomada a partir de 1995, quando excursionou ao Japão com Lisa Ono. De dois em dois anos estava em algum canto do planeta. Em Cuba, gravou o DVD "Nasci para Bailar", em 2008.

Donato foi ainda o primeiro artista de bossa nova a entrar na Rússia, há 20 anos. Foi homenageado no Grammy Latino, em 2010, à época do CD "Sambolero", com o Prêmio de Excelência Musical por suas composições instrumentais e fusões de funk, soul, jazz e ritmos afro-cubanos.

Em 2017, recebeu uma homenagem dos alunos da escola de música da UCLA, de Los Angeles, nos Estados Unidos, com direito a palestra sobre seu clássico álbum "A Bad Donato", gravado ali nos idos de 1970, com direito a um apoteótico show de encerramento.

Donato nunca perdeu o tesão pela música. Aos 85, veio à minha casa sozinho por duas vezes, só para ouvir artistas da era do rádio, como Neuza Maria, quando descobriu que eu tinha um acervo dos ídolos de sua juventude.

Apesar de viver num mundo paralelo, só dele, de sons e ternura, e passar a impressão de ser aparentemente aéreo, Donato sabia de tudo o que estava acontecendo. Era dono de uma memória de elefante e tinha sempre uma tirada divertida ou terna para quem estivesse a seu lado.

Por isso, era difícil encontrar quem não gostasse dele. Hoje resta uma de suas canções que devemos ouvir como mantra —"até um dia, até talvez, até quem sabe".

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