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Leonardo Lichote

João Donato guardava alma e mente de menino mesmo aos 88 anos

No fundo, ele era como uma criança no quintal de seu Acre natal, inventando mundos a partir de árvores, pedras e bichos

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Rio de Janeiro

João Donato morreu nesta segunda-feira aos 88 anos, mas qualquer um que o ouvisse falar e, sobretudo, tocar e cantar, podia perceber que seu corpo que acumulava quase nove décadas guardava uma mente e uma alma de menino de 8 anos.

Foi com esta idade que ele compôs sua primeira melodia, uma valsa para Nini, colega por quem era apaixonado. Desde então, a música atravessou sua existência conservando o sumo da infância —alegria pura, invenção sem amarras ou cartilhas, olhar virgem para o mundo, fantasia que explode do detalhe.

O pianista João Donato na praia da Urca, em frente à sua casa, no Rio de Janeiro - Felipe Varanda/Folhapress

Em depoimento revelador para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro em 2009, ele espalhou pistas para o entendimento de sua mente e música, sua infância infinda. "O relógio para mim não tem números. É um círculo que gira em torno de si mesmo, como a Terra, como o Sol."

"Encontrei-a recentemente, e ela está igualzinha. Só mudaram os números, porque a idade é só um número", disse ainda sobre Nini. Ao lembrar o namoro com Dolores Duran na década de 1950, cravou ainda que "continua até hoje, porque um amor não acaba nunca".

Era deste lugar circular, onde números pouco importam, que Donato compunha e tocava. Costumava sempre gracejar que só fazia variações da mesma música, porque no fundo era como o menino no quintal de seu Acre natal, inventando mundos mil a partir das mesmas árvores, pedras e bichos.

Por sugestão de Sérgio Mendes, Donato imaginava os neologismos de "A Rã" com nomes de sapos amazônicos. "Guiriguindim" seria um sapo pequeninho, enquanto "gorogondom" seria um sapo gordo, de coaxar grave.

Foi nesta mesma floresta real, coberta pela névoa da imaginação, que Donato ouviu um indígena numa canoa assoviar uma melodia que guardou na memória e que anos depois transformaria na composição "Índio Perdido".

Passado mais um tempo, Gilberto Gil escreveu uma letra para ela, que foi rebatizada como "Lugar Comum", uma dos clássicos do repertório do pianista, gravado no celebrado álbum homônimo, de 1975.

Em seus versos, o baiano intuiu, na margem do rio que havia na melodia, a beira do mar, "começo do caminhar para beira de outro lugar". Ou seja, o menino da floresta e o compositor e instrumentista consagrado —noutras palavras, o rio e o mar— estavam desde sempre em Donato.

Estão presentes desde seus primeiros passos na música, no cavaquinho —passando depois pela sanfona de oito baixos e pelo acordeon, com o qual começou a carreira—, até os sintetizadores de "A Bad Donato", disco gravado nos Estados Unidos em 1970.

São onipresentes também em seus trabalhos com artistas décadas mais jovens, como Marcelo D2, Tulipa Ruiz, Kassin, Marcelinho da Lua e os músicos do projeto californiano Jazz is Dead.

A despeito de sua canoa atravessar rios e mares tão distantes entre si, sua obra é marcada por uma assinatura nítida. O compositor Moacyr Luz, seu parceiro, costuma dizer que seu piano é reconhecível no instante em que ele toca o dedo numa tecla. Pode parecer exagero. Mas só para quem não conhece Donato.

Sua relação com os Estados Unidos é a reafirmação das engrenagens de seu relógio sem números, que orbita em torno de si mesmo.

Quando ele chega ao país, no início dos anos 1960, seu trabalho com instrumentistas como o percussionista cubano Mongo Santamaria o faz retomar uma relação com a música caribenha que ele ouvia quando criança nas rádios do Acre. Isto é, sua temporada nos Estados Unidos, fundamental para o desenvolvimento de sua linguagem, era de alguma maneira um mergulho no menino.

A bossa nova, portanto, já estava com Donato antes do marco inaugural de "Chega de Saudade", em 1958. Ele é invariavelmente apontado como um dos precursores da revolução doce e violenta promovida pelo gênero, que o acompanhou até o fim da vida —não como som de museu, mas com a mesma liberdade que vibrava em seu nascedouro.

Afinal, meninos não sofrem de nostalgia. No lugar da saudade, preferem incorporar um hit do momento em seus shows, como Donato fez com "Só Love", da dupla Claudinho & Buchecha, no início dos anos 2000, mesma época em que, moleque, passou a pintar florzinhas nas unhas.

A saudade, para Donato, era aquela exposta em "Minha Saudade", parceria sua com João Gilberto. O acreano e o baiano, aliás, se espelham na genialidade e na criação de uma identidade artística única, assim como na liberdade com relação às regras do mundo.

A letra de "Minha Saudade", circular, diz: "minha saudade/ é a saudade de você/ que não quis levar de mim/ a saudade de você". A vivência da saudade em Donato era, portanto, pela saudade que pertencia ao outro. Afinal, nele, os amores nunca acabam, a paixão da infância permanece "igualzinha" e a idade é só um número. Como se brota saudade nesse terreno?

Talvez, no entanto, seja a maneira mais bonita de experimentar a saudade, como suas melodias fazem crer. Da mesma maneira que se dá em Dorival Caymmi, muitas vezes ela parece surgir do nada, como sabedoria popular e folclore. Donato explicaria apontando o mistério —ou, como ele preferia chamar, Deus. Era d’Ele que vinha sua música, o compositor costumava dizer.

"Gosto de compor na quietude, quando só se ouve a voz de Deus. Você ouve as músicas dos céus, toma nota da que te interessa e passa adiante as outras", disse ele no depoimento ao MIS.

Pouco adiante, afirmou que, como Deus criava coisas boas e ruins, certa vez, triste, ele pegou para si melodias pesadas, que refletiam sua angústia. "Quase foram feitas letras para elas. Mas aí eu pensei: ‘Eu quero passar essa angústia para frente?’. Não tenho esse direito. Joguei fora."

Um artista que não plantou angústia. Poderia ser uma frase que define Donato. Mas seria profundamente antidonatiano defini-lo por uma negativa. Melhor apontar para a afirmação insistente das três notas de uma de suas canções de balanço caribenho.

Três notas nas quais Gil, novamente ele, soube ler o sentido guardado na melodia —"tem, tem, tem". O que os versos seguintes dizem, três a três notas, é a síntese da afirmação da sabedoria anciã da infância que Donato levou consigo ao longo da vida e que tornou em música. Sempre tem —jeito tem, feito bem, tudo tem.

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