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Obra de Milan Kundera supera a guerra, o exílio e a diáspora com humor

Autor de 'A Insustentável Leveza do Ser', amante dos romances e da música, foi central para a literatura mundial

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homem põe as mãos nos bolsos e ergue camisa enquanto olha a sombra de grades ao seu lado

O escritor Milan Kundera após começar a viver na França, em abril de 1979 Jean-Pierre Couderc/Roger-Viollet/AFP

Alex Castro

Escritor, é autor de 'Atenção.' e 'Mentiras Reunidas'

Rio de Janeiro

O escritor tcheco Milan Kundera morreu nesta terça-feira em sua casa em Paris, depois de uma longa doença. Ele deixa a mulher, Vera, e nenhum filho. Mundialmente famoso pelo best-seller "A Insustentável Leveza do Ser", de 1984, ele é autor de uma vasta obra ficcional e ensaística.

A literatura mundial perde um de seus maiores autores contemporâneos. Quem também perde é a Academia Sueca. Com sua morte, Kundera se junta ao time de grandes autores universalmente celebrados por todos —menos pelo Nobel de Literatura. Mais uma omissão vergonhosa para uma lista já extensa, onde também estão Borges, Proust, Joyce, Tchékhov, Twain, Kafka, Nabokov, Orwell e outros.

Kundera entendia como poucos os efeitos absurdos do tempo na vida, nas certezas, nas nações. No curso de sua vida, foi testemunha ocular da queda do Terceiro Reich e da União Soviética, de onde talvez tenha extraído seus principais temas, como a transitoriedade da existência e, em consequência, o seu absurdo.

Nascido em 1929, o jovem Kundera faz parte da geração que chega à maioridade na Tchecoslováquia sob dominação comunista. Ele se filia ao partido do governo em 1948 e suas primeiras poesias são fortemente pró-soviéticas, até mesmo stalinistas. Ele nunca permitiu que fossem traduzidas ou reeditadas.

Formado em cinema e depois professor, teve entre seus alunos o futuro cineasta Milos Forman. Segundo ele, foi Kundera quem lhe fez ler "As Ligações Perigosas", de Choderlos de Laclos, que depois filmaria com o título "Valmont", em 1989.

Apesar da ligação profissional e acadêmica com o cinema, a maior influência na obra de Kundera sempre foi a música. Filho de um musicólogo e pianista, Kundera incluía temas e até notações musicais em sua obra. "A Insustentável Leveza do Ser", por exemplo, é explicitamente escrita como uma composição musical, na qual as vidas dos protagonistas são como partituras que se encontram e se fundem.

Suas primeiras obras, o romance "A Brincadeira", de 1967, e os contos de "Risíveis Amores", de 1969, foram as mais políticas, centradas ao redor dos pequenos dramas de viver em uma República soviética com liberdade de expressão restrita. Por volta dessa época, o escritor já estava distante de sua fase de "poeta stalinista".

Até a Primavera de Praga, em 1968, uma breve tentativa de abertura esmagada pelos soviéticos, Kundera ainda era reformista, debatendo publicamente contra escritores mais críticos ao regime comunista, como Vaclav Havel, depois tanto último presidente da Tchecoslováquia quanto primeiro presidente da nova República Tcheca, de 1993 a 2003.

O destino das "pequenas nações" da Europa Central, especialmente de suas línguas e literaturas, sempre foi um de seus principais temas. A expressão é do próprio Kundera, em discurso de 1967, "A Literatura e as Pequenas Nações", inédito no Brasil.

No ensaio "A irreparável desigualdade" em "A Cortina", de 2005, ele comenta: os poloneses são tão numerosos quanto os espanhóis, mas nunca ocorreria a um espanhol que a Espanha não poderia existir; já o hino da Polônia começa com "a Polônia ainda não morreu".

Finalmente, em 1975, Kundera sai da Tchecoslováquia e se muda para a França, onde publica seus romances seguintes, ainda escritos em tcheco: "O Livro do Riso e do Esquecimento", em 1979, que lhe custou a perda da cidadania tcheca, seguido pelo sucesso mundial de "A Insustentável Leveza do Ser", em 1984 e por "A Imortalidade" de 1990.

Para quem não viveu o Brasil de 1985, aliás, é difícil enfatizar como "A Insustentável Leveza do Ser" era lido e comentado por todo lado. No país da abertura e da Nova República, no ano de Tancredo recém-morto e Sarney recém-empossado, seus temas de repressão e liberdade adquiriram uma urgência inédita.

A partir daí, Kundera empreende uma das aventuras mais arriscadas para um escritor: cidadão francês desde 1981, decide trocar de língua no meio da carreira. Seu romance seguinte, "A Lentidão", de 1995, é o primeiro escrito diretamente em francês, seguido por "A Identidade", de 1998, "A Ignorância", de 2000 e, por fim, "A Festa da Insignificância", de 2014. No Brasil, toda a obra de Kundera é publicada pela Companhia das Letras.

São raros os escritores que conseguiram escrever grandes obras em idiomas que não eram os seus desde a infância. Joseph Conrad, polonês, é um deles, talvez por nunca ter escrito literatura em sua língua materna: ele já começa no inglês que aprendeu no mar. Nabokov talvez seja o principal exemplo: escreveu grandes obras em seu russo materno e sua obra-prima —os críticos divergem entre "Lolita" ou "Fogo Pálido"— em inglês.

Juliette Binoche e Lena Olin em cena do filme 'A Insustentável Leveza do Ser', baseado no livro de Milan Kundera - Reprodução

Kundera nunca foi um artesão do idioma —o traço formal mais marcante de seus romances é a estrutura. Seus textos não caem em qualidade estilística na nova língua, mas algo definitivamente fica pelo caminho.

Sua última obra-prima, talvez não por acaso, é "A Imortalidade", a última escrita em tcheco. Longe da terra natal e dos seus dilemas políticos, sua literatura, apesar de nunca explicitamente política, perde força.

Sua mulher, Vera Kunderova, que o acompanhou no exílio e foi sua agente literária e porta-voz —ele quase nunca dava entrevistas ou falava com a imprensa— afirmava que "emigrar é o maior erro que uma pessoa pode cometer" e se comparava a uma "escravizada que à noite sonha com a terra natal".

O legado principal que Kundera deixa, além de um amor exuberante pelo romance enquanto gênero literário, é uma revalorização do humor na literatura.

Houve época em que as grandes obras literárias faziam seus leitores gargalharem. Depois, em algum momento, uma certa seriedade existencial se impôs como qualidade dominante.

O tcheco, porém, em sua obra ensaística (que compreende "A Arte do Romance", "Os Testamentos Traídos", "A Cortina" e "Um Encontro"), busca recuperar os grandes mestres do humor, de Rabelais a Cervantes, de Sterne a Musil.

Milan Kundera, de sua pequena nação sempre perigando desaparecer, tendo passado pela Segunda Guerra e pela ocupação alemã, pelo domínio soviético e pelo exílio político, pela diáspora e pela troca de idioma, é o escritor perfeito para nos ensinar, em sua prática ficcional e em seus ensaios literários, que o humor expõe e revela, salva e redime.

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