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Por que Édouard Louis se rebela contra a literatura ao falar do sofrimento dos pais

Jovem francês aclamado por 'O Fim de Eddy' lança livros sobre uma família esmagada pela política

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homem loiro de jaqueta preta coloca as mãos nos bolsos em frente a parede escura de tijolos

O escritor francês Édouard Louis, autor de 'O Fim de Eddy', que lança dois livros sobre seus pais Andreas Terlaak/Lumen

São Paulo

"Meu pai me falava o tempo todo que homem não chora, mas chorava o tempo todo", diz o escritor Édouard Louis, gesticulando atônito em frente à câmera. "Sempre penso em quanta energia gastamos produzindo as mesmas normas que nos destroem."

Toda sua obra, um compêndio de narrativas autobiográficas de um jovem gay nascido na pobreza, pode ser lida como um contra-ataque a esse tipo de norma —contra tudo aquilo que tenta dizer a ele o que fazer, como se comportar, sobre o que escrever.

"Depois dos meus primeiros livros, senti as regras da literatura pesando demais nos meus ombros. Assim como as normas de gênero, são difíceis de descrever, não estão estampadas numa Bíblia, mas se impõem todo dia sobre você e disciplinam seu corpo."

Uma dessas regras, diz, é que romances não podem ser políticos demais. E desde sempre seu projeto literário se dedicou à memória íntima de questões fundamentalmente políticas —não a história de sua politização, perceba, mas de uma vida atravessada por política querendo ele ou não.

A distinção é sutil. Mas qualquer um que leu Annie Ernaux, e não foram poucos, está familiarizado com o esforço de contar uma história social por narrativas particulares. A obra de Louis está bem sedimentada na mesma prateleira de autoficção —tanto, aliás, que nem parece que ele tem só 30 anos de idade.

É que o autor já provocou estardalhaço no meio literário com a tocante estreia "O Fim de Eddy", best-seller publicado na Tusquets com tradução da poeta e jornalista Francesca Angiolillo, logo seguido pelo assombroso "História da Violência", sobre um estupro que sofreu numa véspera de Natal.

São volumes que divergem, pela amplitude, dos dois livrinhos curtos que ele lança com pompa na Todavia, sua nova casa. "Lutas e Metamorfoses de uma Mulher" e "Quem Matou Meu Pai" se debruçam, respectivamente, sobre a vida de sua mãe e seu pai.

São histórias proletárias de um homem bruto, marcado por um acidente que o leva da pobreza à miséria, e uma mulher trancafiada em casa, constante alvo de seus rompantes de fúria e frustração.

"Medidas políticas, para pessoas como eles, eram questões de vida ou morte", afirma Louis. "Falar sobre quando Macron decidiu tirar um benefício social de que meu pai dependia é tão íntimo quanto falar sobre seu primeiro beijo."

A narrativa que ele monta de seu pai —com quem teve uma relação perturbada pela homofobia, um traço hoje amainado a ponto de o homem distribuir os livros de seu filho aos amigos— tem um desfecho quase relatorial, elencando políticas de assistência social que costuraram sua vida ao bel-prazer dos governos franceses de plantão.

Já a história de sua mãe tem verniz político mais discreto —e, ironicamente, mais revolucionário. "Ela era aprisionada duas vezes pelo papel de mulher", afirma o filho. Ele se refere, primeiro, à conformidade no papel de dona de casa que a França rural esperava dela e, segundo, à sensação sufocante de querer escapar dali, mas não ter dinheiro.

Quando a separação enfim acontece, fica evidente que a filiação de Louis está com a mãe. Uma passagem chamativa da obra é quando o escritor mobiliza a feminista Monique Wittig, uma referência nos estudos de gênero e sexualidade, para concluir que ele "nunca foi um homem", afinal, foi atacado por ser gay e afeminado desde que se entende por gente. "E é essa desordem da realidade o que mais me aproxima da minha mãe."

A proximidade não gerou uma relação pacificada, nem de longe. Louis relata lembranças da raiva incontrolável que sentia ao ver a mãe feliz, que o levavam a boicotar cada momento de leveza com birra infantil.

"Nós dois sofríamos os efeitos da mesma dominação masculina", diz. "Mas isso não fazia com que nos uníssemos. Por isso sempre achei que a violência social não constrói comunidades, só aparta."

Isso fica patente quando Louis descreve a postura que adotou depois de acessar círculos universitários e se imergir numa cultura que via como mais sofisticada. É uma das diferenças mais claras, aliás, de sua literatura para a de Ernaux, que também pensa mobilidade social similar.

"Queria usar minha nova vida como uma vingança contra a minha infância, contra todas as vezes em que vocês me obrigaram a ver, meu pai e você, que eu não era o filho que queriam ter tido. Eu me tornava um desertor de classe por vingança, e essa violência se somava a todas aquelas que você já tinha vivido."

Hoje, Louis ergue sua literatura contra as armadilhas que a história preparou para seus pais. Seu projeto literário, afirma ele, vem da tradição francesa de construir uma obra massiva sobre seu ambiente social, com livros interligados entre si, à la Émile Zola ou Honoré de Balzac.

Não há risco de se repetir, diz com confiança, porque a história está sempre mudando. Ele usa o exemplo de seu irmão mais velho, retratado nos seus livros como um homem marcado pelo alcoolismo e pela agressividade. Agora, o irmão está morto, tragicamente, aos 38 anos. "Com certeza a maneira como eu escrever sobre ele a partir disso será diferente."

É uma literatura que se inspira nos clássicos e se volta contra eles, um tipo de rebeldia que é familiar a todo mundo que tem filhos —e uma relação tão desassossegada quanto a que Louis tem com seus pais.

"Construíram o que chamam de literatura contra vidas e corpos como o dela", escreve, na introdução do livro sobre sua mãe. "Porque sei agora que escrever sobre ela, e escrever sobre a sua vida, é escrever contra a literatura."

Lutas e Metamorfoses de uma Mulher

  • Preço R$ 54,90 (112 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Édouard Louis
  • Editora Todavia
  • Tradução Marília Scalzo

Quem Matou Meu Pai

  • Preço R$ 49,90 (72 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Édouard Louis
  • Editora Todavia
  • Tradução Marília Scalzo
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