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Ricardo Bittencourt

A morte de Zé Celso apequena a minha vida, diz ator que vivia com diretor

Amigo relembra rotina das madrugadas antes do incêndio, quando peça de 'A Queda do Céu' era escrita pelo dramaturgo

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Ricardo Bittencourt

Ator

São Paulo

Ainda permaneço obnubilado. Consciente da minha missão cumprida na nossa irmandade, e eu, até a última fagulha de vida, literalmente.

Fãs durante o velório do ator, diretor e dramaturgo Zé Celso, no Teatro Oficina - Jardiel Carvalho/Folhapress

Com isso ganho força, mas é infirme, logo, logo, a devastação ganha a alma e o corpo. A brutalidade das últimas imagens, também ainda recorrentes.

E a acolhedora percepção, sem demagogia, de que ele vive em mim e em tantos. Agora, somos muitos Zés! Poucos germinaram tanto quanto Zé. Quase ninguém foi tão livre e fértil.

Éramos, e somos, família. Família, não apenas teatral. Zé é meu irmão, amigo, mestre, pai, filho e Espírito Santo.

Morávamos juntos nestes últimos anos, bem como em tantos outros passados. Nos adoravamos, intimidade e confiança sem filtros, afinação rara entre diretor e ator, comunicação perene e entusiasmada, amor galopante e eterno.

Na nossa atual configuração familiar, Zé, Marcelo (meu porto seguro, irmão e cúmplice de uma vida), Victor, Nagô e eu, tínhamos ritmos e hábitos que se assemelhavam.

Éramos os que sempre testemunhavam o passar das noites. Os meninos, Marcelo e Victor, mais centrados e disciplinados, têm o saudável hábito de aproveitar a noite para dormir.

Assim, não raras vezes, desde que retornei ao lar do Paraíso — segundo a atriz Cristina Mutarelli, não é uma casa, mas uma residência artística permanente — quase sempre era eu a última pessoa a estar com ele até as alvoradas, depois do nosso jantar nas madrugadas e de horas e horas de fofocas e conversas.

Neste período em que ele estava imerso na adaptação para o teatro de "A Queda do Céu", diariamente, eu fazia o relato sobre o que Reinaldo Azevedo falou naquele dia, ele escutava atentamente e comentávamos durante nossa refeição, ou eu invadia o gabinete dele para mostrar trechos do programa do Reinaldo em alguma improvável pausa do trabalho.

Sou fã de Reinaldo como sou fã de Bethânia. Na sequência, sonhávamos com projetos e estratégias, esculhambávamos com um monte de coisas e de gente, nos deslumbrávamos com outras tantas coisas e pessoas.

A morte do meu amigo apequena a minha vida e escancara a certeza da impermanência e da inconstância, verdades conhecidas desde sempre pelos humanos mas, quando vividas, experienciadas, nos colocam em sintonia fina com a crueldade da vida viva.

Não foi somente a casa de Zé e Marcelo que pegou fogo. Eu perdi o meu lugar no mundo.

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