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Júlio Medaglia

Júlio Medaglia: Zé Celso encantou Sartre por seu teatro sem pirotecnia

Trabalhei com ele e conheço muito bem seu poderio de incendiar situações, ideias, culturas e contextos

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Júlio Medaglia

Maestro

São Paulo

Ligando a televisão na terça-feira à noite, vi uma cena das janelas do apartamento de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, cuspindo chamas. Nada me surpreendeu, pois trabalhei com ele desde os anos de 1960 e conheço muito bem seu poderio de incendiar situações, ideias, culturas, contextos.

Zé, morto nesta quinta-feira (6) aos 86 anos, é um vulcão de ideias que possui uma incrível coerência dentro de seu mais arrojado, estapafúrdio e surpreendente anarquismo. Muito diferente de outros aventureiros culturais que nos assolam hoje. Ele, mais que ninguém, sabe ler e compreender o conteúdo de um texto dramatúrgico.

O diretor teatral José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, em foto de 1964 - Acervo UH/Folhapress

Ainda recentemente assistimos ao assassinato de Carlos Gomes e a depredação de sua obra-prima "O Guarani" no Theatro Municipal de São Paulo, onde aventureiros incompetentes e criminosos fizeram gracinhas idiotas com uma obra da cultura musical universal.

Representaram a obra máxima com escadas de metal Rohr, carrinhos de rolimã arrastados no palco por funcionários com fones de ouvido e roupas de trabalho do teatro, com uma broca de metal caindo do céu perfurando o palco como se procurassem petróleo numa cena de séculos atrás na floresta carioca.

E a pobre Ceci, enquanto relatava seu mais apaixonado amor por um ingênuo indígena, via-se em projeções eletrônicas acima de seu drama, frases reivindicatórias de terras, manifestos políticos.

Em seguida chegava um corpo de indígenas cantando canções reivindicatórias com um violãozinho sem vergonha tocando acordes de dó maior, harmonias que indígenas jamais conheceram, e uma rabeca típica do folclore nordestino tentando mostrar a ingenuidade e valor humano de uma possível reivindicação de terras num palco que nada tinha a ver com manifestações políticas.

A diferença entre essa aventura que a direção incompetente do Theatro Municipal de São Paulo permitiu —ofendendo inclusive cantores e a sinfônica do teatro, que apresentaram música de primeira—, é que Zé Celso sabia ler e compreender um texto, sem desviar um milímetro do âmago da ideia de origem da obra.

Se ele fizesse uma obra de Shakespeare num galinheiro, seria mais Shakespeare do que nunca. Quando ele abordava um texto e o transformava numa realidade atual, seu conteúdo era preservado e multiplicado, e não depredado.

Quando fizemos juntos, Zé Celso e eu, o "Galileu Galilei" de Brecht no Teatro Oficina no final dos anos 1960, o drama do grande cientista desacreditado e a leitura do Brecht foram trazidos ao Bexiga de forma revolucionária, incandescente, digna e respeitosa —a Galilei e a Brecht.

No auge do tropicalismo, quando valores e linguagens culturais das diversas artes iam pelos ares, não teria sentido encenar aquela obra de Brecht nos parâmetros do Berliner Ensamble de Berlim do tempo de sua fundação, pois o "aproche" brechtiano era datado como linguagem, mas universal como provocações e conteúdo.

Assim, em pleno tropicalismo, movimento do qual participei com arranjos, trouxemos a obra ao contexto daquela verdadeira Broadway paulista e "Berliner Ensemble sessentista".

E quando os poetas concretistas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, ressuscitaram a obra de Oswald de Andrade, o Teatro Oficina e Zé Celso com "O Rei da Vela", fizeram explodir e multiplicar as ideias contidas num livro de uma única edição e já quase esquecido nos anos posteriores à revolução cultural de 1922.

A explosão de ideias que o tropicalismo trazia à música brasileira, que misturava o fino e o cafona, a vanguarda e a retaguarda, a poesia do Cuíca de Santo Amaro e a poesia concreta, o canto e o grito, o som e o apito, o político e o intimista, o social e o sentimental, o berimbau e o teremim, o portunhol e o latim, estavam presentes em dimensões, contexto, ousadia e dignidade cultural semelhantes ao que o Oficina e a trupe de Zé Celso realizavam na rua Jaceguai.

Vi nascer o furacão Zé Celso/Oficina em setembro de 1960 quando ele, juntamente com Augusto Boal, traduziram e encenaram uma obra-prima de Jean-Paul Sartre, "A Engrenagem", para a qual escrevi a música.

Jorge Amado trouxera Sartre ao Brasil e ele fez questão de assistir à encenação. Naquele momento se superava de alguma forma a fase brilhante e revolucionária do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, que nos trouxe obras-primas da cultura universal, deixando para trás em parte um teatro quase de vaudeville anterior de nossa dramaturgia.

O Arena partia para um teatro crítico e de conteúdo mais político-social —com Gianfrancesco Guarnieri e Boal— e Zé Celso compreenderia, "avant la lettre", o que seria o deslumbramento dos anos de 1960, semelhantes aos "roaring twenties", nas artes e na cultura popular mundial.

A nossa encenação da obra de Sartre, apesar da seriedade e denso conteúdo político e crítico do texto, possuía a provocação dramatúrgica de cada partícula do texto, algo que deixou o filosofo francês encantado e o levou a participar diariamente de debates com a intelectualidade paulista.

Sartre voltou à França soltando elogios por todos os lados —inclusive à minha música— passando assim um atestado de que, toda a seriedade pode ser tratada com alegorias e dignidade, com deslumbramento, mas sem o acréscimo de pirotecnias gratuitas e prejudiciais ao sentido do texto abordado.

E isso deu certo. Grande parte das artes brasileiras passou a ser outra após a implantação da Uzyna Uzona de José Celso Martinez Corrêa no Bexiga paulista.

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