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Bete Coelho

Bete Coelho: Zé Celso mudou o fim de Beckett e trabalhou sem patrocínio

Sob adversidades, criador do Teatro Oficina alterou o clássico 'Esperando Godot' e lotou a casa com montagem de 'Cacilda!'

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Bete Coelho

Atriz e apresentadora

Estou completamente ligada a Zé Celso, morto nesta quinta-feira (6) vítima de um incêndio, desde o último ensaio que tivemos no escritório da casa dele, ao lado do quarto agora queimado. Trabalhamos no texto escrito por ele para "O Banquete", uma grande fala de Sócrates para Phédro, que ele mesmo escolheu para eu ler na celebração do amor que aconteceu no Teatro Oficina no dia 6 de junho.

Quando finalmente fui ler para os noivos, Marcelo Drummond e José Celso Martinez Corrêa, e para a plateia abarrotada de artistas e amigos, tive a nítida sensação de pertencimento. Foi lá que o fenômeno "Cacilda!" aconteceu, em 1998, lotando todos os dias, depois de nove meses de ensaio, sem patrocínio, com elenco incompleto e inúmeras dificuldades, mas com um núcleo resistente e persistente sob a liderança de um apaixonado Zé Celso.

Zé Celso, criador do Teatro Oficina, em ensaio para a revista Serafina, da Folha, em outubro de 2016
Zé Celso, criador do Teatro Oficina, em ensaio para a revista Serafina, da Folha, em outubro de 2016 - Daniel Klajmic

Foi naquele espaço também que encenei um dos "ensaios de risco" do jornalista e escritor Otavio Frias Filho, intitulado "O Terceiro Sinal", que conta a sua experiência como ator na peça de Nelson Rodrigues, dirigida por Zé Celso, em que o próprio diretor escala a personagem do repórter para o jornalista, abalando assim, mais uma vez, a divisória que separa a vida e teatro.

Estou segurando o fio de Ariadne com todas as matrizes e motores que desceram pelo labirinto histórico e único do Teatro Oficina. Zé Celso se dissolve em milhares de nós que enfrentamos a descida ao inferno, ao gelado e ao quente, para encontrar a razão, a paixão, a forma desse pacto: o teatro fecundo e vivo que quer expandir e fazer renascer o rio Bexiga e trazer agricultura para a terra mãe Jaceguai.

Zé é sinônimo de "T" de teatro. Sua cama hospitalar e seu coma eram cenário e cena, assim como ele fez com "Cacilda!". Ele foi o grande protagonista de sua vida comunitária e monástica. Ele foi Hamlet descendo a pista de calças arriadas. Ele foi Gertrudes na procissão de luto, ao som de lamentos e cantos de cabras e bodes. Ele foi Cacilda de todas as eras.

Ele foi a mudança que fez no fim de "Esperando Godot", porque ele não era bobo nem nada. Ele foi o Treplev deslocado e marginalizado do teatrão convencional. Ele foi Nina quando pensava na vocação e não tinha medo da vida. Ele foi o coro de "Bacantes". O coroado. Ele foi risada cúmplice e certeira nas libidinagens. Para ele, todo segredo era profano e todo sagrado era sagrado. Outra coisa —ele odiava sala de visitas!

Foi numa noite fria, há mais de 30 anos, no meio do nada, no chão do terreiro, hoje ocupado pelo Teatro Oficina, que começamos a plantar o impossível: "Cacilda!", de 900 páginas. E Zé continuou na devoção do impossível —um "Ham-Let" de mais de cinco horas de duração, quebrando tabus, paredes e convenções, até chegar em "Os Sertões", de Euclides da Cunha, com mais de 24 horas, divididas em cinco espetáculos, onde além de tudo desfrutávamos de atuações geográficas e geológicas.

Zé Celso agora é o fio que seguramos e que não vamos soltar. A última palavra como sempre é dele: evoé!

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