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Leonardo Lichote

Caetano Veloso leva a vontade de viver de 'Transa' a show histórico

Músico entoou um dos seus discos clássicos do exílio com Jards Macalé no Festival Doce Maravilha sob chuva e ventania

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Rio de Janeiro

A ideia do domingo era um retorno à mágica Londres do início dos anos 1970, onde Caetano Veloso, Jards Macalé, Tutty Moreno, Áureo de Sousa e Moacyr Albuquerque arquitetaram e ergueram "Transa", álbum celebrado no show mais esperado do festival Doce Maravilha, no Rio de Janeiro.

O clima londrino, porém, foi o primeiro a chegar. A chuva praticamente ininterrupta que caiu sobre a Marina da Glória desde o meio da tarde causou problemas de som e luz no palco principal, além de provocar atrasos e trocas da ordem de atrações, que confundiram, frustraram e revoltaram boa parte da plateia. Milhares foram embora sem ver o show do baiano, que começou à 1h da madrugada —a previsão inicial era 20h30.

Caetano Veloso canta 'Transa' no Festival Doce Maravilha, no Rio de Janeiro - Agatha Gameiro/Zimel Press/Agencia O Globo

Quem ficou para ver a celebração dos 50 anos de "Transa", completados em 2022, presenciou, no entanto, a mágica esperada. E além. Porque o show, transferido para o palco menor do evento, seria já histórico pela oportunidade de ver ao vivo os músicos que fizeram o disco —exceto por Moacyr, morto em 2000— tocando suas canções. Mais: nos tons originais, que em alguns, poucos, momentos Caetano não conseguia alcançar. A plateia —cantando junto o tempo todo— cobria naturalmente essas notas.

"Fiz 81 anos alguns dias atrás", afirmou o baiano, dizendo que mesmo assim quis mantê-las no tom em que foram gravadas. Ele sabia da importância de detalhes como esse —ou como seu "bora, Macau" que chama o solo de Macalé em "Nine Out of Ten"— para dar cores ainda mais vivas ao encanto.

A visita ao "Transa", porém, foi mais longe e fundo do que a mera —nada mera— reconstituição ao vivo do disco. Porque, no palco, os arranjos, sem perder a fidelidade aos originais, incorporam a informação musical de sua banda atual, na qual nenhum dos integrantes era nascido quando o álbum foi lançado. Há, por exemplo, na percussão de Kaynã do Jeje, Pretinho da Serrinha e Thiaguinho da Serrinha, o testemunho do que se deu nos tambores brasileiros —especialmente de Rio e Bahia— nas últimas décadas.

A guitarra de Lucas Nunes, do Bala Desejo e Dônica, o baixo de Alberto Continentino e os teclados de Rodrigo Tavares, da mesma forma, se movem na direção de "Transa" —quase por força genética, já que o álbum certamente fez parte de suas formações. Mas, em suas mãos, "Transa" também se move na direção deles, na direção de 2023. Assim, puramente em seus aspectos sonoros, o show amarra pontas entre a música e o Brasil —ou o sonho de Brasil— do início dos anos 1970 e a música e o Brasil de hoje.

Uma conexão que não se dá puramente pelos caminhos sonoros. Há um reconhecimento do eterno terreno de desalento do qual eternamente se consegue colher as raízes de saúde do país. "Triste Bahia", talvez encarne isso da maneira mais nítida. O poema de Gregório de Mattos que aponta vícios da alma da Bahia, metonímia do Brasil, serve de base para colagens —procedimento que Caetano explora bem no disco— de fragmentos de cantos populares que apontam para a vitalidade dessa mesma alma.

Quando se encerra a canção e o transe que ela estabelece na Marina da Glória ao longo de seus dez minutos, Caetano reconhece o que houve ali. "Sabe o que é isso? É que eu cantei em português", diz, apontando para a também mágica força da língua e referindo-se ao fato do disco ser em grande medida em inglês. "Um inglês tosco", ele diria mais tarde.

O show projetou-se para além da reconstituição também por incorporar em seu roteiro canções que não vieram de "Transa". Logo depois de abrir com "You Don’t Know Me", primeira do disco, Caetano avisou que iria tocar algumas "pré-Transa". Didaticamente, traçou a linhagem histórica que apontava para os caminhos que ele exploraria no álbum de 1972.

"Essa eu compus na prisão", disse, referindo à "Irene". "Maria Bethânia" e "London London" são de seu álbum londrino anterior à "Transa". "The Empty Boat" ele lembrou que compôs "antes de ser preso e sonhar que seria exilado". Seus versos e estrutura, porém, conversam diretamente com o olhar —ora desolado, ora esperançoso, ora ambos— que lançou a partir do exílio. "Oh, my boat is empty/ Oh, my heart is empty (...) From the east to the west/ Oh, the stream is long/ Yes, my dream is wrong."

Em seguida, o baiano saltou para o "pós-Transa" ao mostrar a canção-título de "Araçá Azul", álbum que radicalizava as experiências musicais iniciadas em Londres. Mais do que oferecer uma aula de estética e sentido artístico ao expor essa linha do tempo do pré ao pós, Caetano ampliou cada uma dessas canções e, consequentemente, o próprio "Transa" em diálogo com elas.

Gal Costa, que fez vocais em algumas faixas de "Transa", foi lembrada por Caetano, que disse que, se estivesse viva, "ela estaria aqui". "Ela está", ouviu-se na plateia. O artista contou que convidou Angela Ro Ro, que gravou a gaita em "Nostalgia", que encerra o disco, mas que ela não pôde ir.

Macalé, Tutty e Áureo, que com Caetano e Moacyr formavam o núcleo de "Transa", foram. A presença deles, nesse contexto descrito até aqui, dava ao show, ainda mais, a consistência do Tempo. Assim que entraram no palco, Caetano disse: "Agora vamos ter que tocar tudo de novo". E realmente voltaram, agora com a formação completa, a "You Don’t Know Me", abertura do disco e do show. O movimento tão simples quanto inusitado —um bis antes do fim, a agulha voltando para o início do lado A sem que girasse todo o lado B— teve o efeito de aprofundar a citada mágica.

Havia ainda mais uma camada no palco. Macalé e Caetano juntos tocando "Transa", o álbum que foi o pivô de desentendimentos entre os dois por um longo período por conta dos créditos não devidamente dados originalmente. A questão foi resolvida há anos, porém não havia como ignorar ali a força, novamente, do tempo. Caetano oferecendo o palco para que Macalé cantasse "Mal Secreto" e "Corcovado" teve uma beleza própria, por si e em relação a "Transa". Como se Waly Salomão e João Gilberto não pudessem estar fora dessa Londres —porque efetivamente, de alguma forma, estavam lá.

Gravada por Caetano em "Meu Coco" e por Macalé recentemente no disco "Biscoito Fino", "Sem Samba Não Dá" entrou no show como outro aceno bonito que os dois se deram. Além disso, fez com que artistas como Duda Beat, MC Cabelinho e Marília Mendonça fossem trazidos para o universo de "Transa", como ramificações distantes da mesma raiz funda da canção brasileira.

"Nostalgia (That’s What Rock’n’Roll is All About)", última do disco, encerrou também o show. Momentos antes, Caetano perguntava "Pra que rimar amor e dor?", em "Mora na Filosofia", de Monsueto, uma das gravações mais marcantes de "Transa". E afirmava, em "Nine Out of Ten", "I’m alive vivo muito vivo/ Feel the sound of music banging in my belly". É disso que trata, em síntese possível, "Transa": estar vivo, saber do amor, da dor, do chão de casa —"oh, quão dessemelhante", "no Abaeté tem uma lagoa escura", "I’m the silence that’s suddenly heard after the passing of a car"— e, sobretudo, do que o sustenta.

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