Como KL Jay, do Racionais MCs, se tornou um dos maiores DJs do Brasil

Músico lembra samples marcantes, explica boicote à Globo e diz que '1% que comanda o país tem mentalidade escravagista'

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KL Jay, o DJ dos Racionais Bruno Santos/Folhapress

São Paulo

"Naquela época não tinha Shazam", diz KL Jay, o DJ do Racionais MCs, em referência a aplicativos de reconhecimento de música. Ele se lembra de uma época, nos anos 1980, em que seus pares retiravam os rótulos dos LPs que animavam os bailes. Era uma maneira de garantir a exclusividade de tocar determinada canção, escondendo dos outros DJs quais eram o título e o artista da faixa.

Mas Kleber Simões, nome de batismo do artista, nunca gostou disso. "Se a pessoa me perguntar quem tá cantando eu mostro logo a capa para ela comprar o disco", ele diz. "Sempre odiei esse lance de competição. Odeio."

KL Jay, dos Racionais, celebra 35 anos de carreira no ano em que o hip-hop faz 50 anos - Bruno Santos/Folhapress

Esconder o ouro não faz o tipo de um dos maiores DJs da história do Brasil, conhecido justamente por propagar e reimaginar as sonoridades pelas quais é devoto —seja em sets ou com samples no Racionais.

Este mês, em que o hip-hop completa 50 anos de existência, ele celebra seus 35 de carreira com o festival Sample, que ocupa o Centro Cultural São Paulo entre os dias 12 e 30. E se o DJ foi o primeiro personagem no surgimento do gênero nos Estados Unidos, o estabelecimento do rap no Brasil passa de maneira essencial pela mão leve e o ouvido preciso de KL Jay.

Desde que conheceu Mano Brown no largo São Bento, berço do hip-hop paulistano, o DJ ajudou os Racionais a se tornarem o maior grupo de rap do país —um marco de impacto incalculável no debate racial, na cultura e na sociedade brasileira. Mas, antes de tudo isso, ele diz, "veio a música".

"Meu pai trampava na rodoviária, e tinha um aparelho de rádio FM em que ele ouvia os jogos do Santos", diz Kleber. "Ele tinha muito zelo, guardava o rádio envolto em uma toalha na gaveta, não deixava mexer. Mas descolei onde ele guardava e comecei a pegar. FM é outro som, né? Um estéreo bonito de ouvir."

Não é difícil perceber o impacto da descoberta das frequências moduladas, e especialmente do funk e do soul americanos dos anos 1970, na vida de KL Jay. Na sala ampla de seu apartamento no 27º andar do edifício Copan, no centro de São Paulo, há um toca-discos e diversas caixas com LPs —cerca de um quinto da coleção que beira os 10 mil vinis.

Ele se lembra de ficar maravilhado ouvindo "Make That Move", do Shalamar, ou "Don't Stop the Music", do Yarbrough & Peoples. "Ali eu me identifiquei. Passei a ir nos bailes, andar com os caras mais velhos, ir às lojas de discos. Você começa a respirar o ambiente."

Cria do Tucuruvi, na zona norte de São Paulo, Kleber passou a frequentar a cena efervescente do centro, dos DJs, MCs, bboys e bgirls e o grafite. O ponto de encontro oficial, diz Kleber, era aos sábados, no São Bento.

"A galera dançava, levava [as caixas de som] boombox, as gangues de breaking ficavam treinando, os MCs cantando. Faziam batida na lata de lixo —o [Mano] Brown cantou em batida de lixo."

Na primeira metade dos anos 1980, já dançava o breaking e acompanhou a chegada do rap de gente como Afrika Bambaataa e Sugarhill Gang, se somando ao soul e ao funk nos círculos de música negra.

"Aí chegou ‘The Message’, que foi o primeiro rap político, falando da rua, da perseguição da polícia, pobreza, droga", diz. O DJ Grandmaster Flash, que assina a música, foi quem inventou a técnica de usar dois discos iguais para fazer uma batida —o recorte de uma parte instrumental da música— se repetir e durar quanto tempo ele quisesse. É a ideia que originou o sample.

A essa altura, KL Jay levou Brown para trabalhar com ele de office boy. Conheceu Edi Rock, outro MC dos Racionais, porque ele frequentava uma escola que ficava em frente onde o DJ estudava, a Escola Estadual Albino César. Unidos pelo amor à música e à dança, eles começaram a tocar em bailes que aconteciam dentro das casas de família —um costume naquele tempo.

KL Jay já tinha conhecimento das técnicas de Grandmaster Flash —não como ele as fazia, apenas a sonoridade através das mixtapes. O ponto de virada foi quando ele viu um set do DJ do rapper Kool Moe Dee em São Paulo, em 1988.

"Ele colocou a música do Tim Maia, ‘Você Mentiu’, deixou tocar e, quando chegou no refrão, fez ‘você mentiu-tiu-tiu-tiu’, e todo mundo ovacionou o cara", diz ele, que tinha 19 anos na ocasião. "Falei, ‘caralho, mano, dá para fazer scratch em qualquer disco!’ Eu achava que só podia fazer em disco especial, importado. Foi naquele momento que decidi ser DJ para o resto da vida."

Dali em diante, KL Jay virou um mestre da arte dos toca-discos, de tratar as picapes como instrumentos, fazendo uma música "entrar" na outra, selecionar e repetir trechos, usar o vinil para fazer batidas. A mão leve é porque, com um toca-discos "de madeirinha", não podia colocar muita força senão corria o risco de quebrar o equipamento e arranhar os vinis.

Ele ainda usava o "madeirinha" nos shows de "Holocausto Urbano", primeiro álbum dos Racionais, de 1990, ou toca-discos fornecidos pelos contratantes. Em 1993, com "Raio X do Brasil", o grupo emplacou os sucessos "Fim de Semana no Parque" e "Homem na Estrada", e só então conseguiu comprar toca-discos próprios, de melhor qualidade.

Para "Sobrevivendo no Inferno", clássico álbum de 1997, KL Jay selecionou samples para as duas músicas mais importantes, "Capítulo 4, Versículo 3" e "Diário de Um Detento". Foi ele quem pescou as linhas de baixo das duas faixas —a primeira, de "Pride and Vanity", do Ohio Players, e a segunda de "Easin' In", de Edwin Starr.

Desde que eternizaram "Ela Partiu", canção até então pouco conhecida de Tim Maia, em "Homem na Estrada", os Racionais se tornaram expoentes desse jeito moderno de compor —fazer música a partir de música.

Ao lado do toca-discos em seu apartamento, KL Jay expõe a MPC (ou midi production center) da marca Akai em que compôs o instrumental de "Jesus Chorou", clássico dos Racionais lançado em "Nada Como um Dia Após o Outro Dia", de 2002. O DJ fez a música a partir de um sample de "Free at Last", de Al Green.

"O Brown fez a levada a partir do sample, e se você reparar, ele canta junto com o baixo e o bumbo", ele diz. "É por isso que é foda, por isso que todo mundo decora o rap."

Se antes o quarteto atuava mais dirigindo seus discos —levavam samples e escolhiam batidas feitas por um técnico em estúdio—, a chegada da máquina foi uma mudança libertária. Com a MPC, os Racionais passaram a compor as músicas em casa, levando ao estúdio apenas para colocar as vozes e mixar.

As batidas eletrônicas do trap, então uma novidade quando os Racionais a abraçaram em "Cores e Valores", de 2014, e atualmente no topo das paradas do Brasil, hoje soam plastificadas para KL Jay. "Ficou meio fábrica de bolacha, né? Todo mundo usando Auto-Tune, falando para as meninas sentarem, que tem droga e dinheiro para caralho."

Para ele, fica tudo "mais ou menos igual". "Se você ouvir o BK, é diferente dos demais. Kendrick Lamar, também. Mas tem esse molde que estão fazendo, e o dinheiro vem fácil. Aí a música dura uma semana, dez dias e, depois, próxima. Não consigo fazer isso."

Essa mentalidade acompanha Kleber há tempos, e se desenrola em vários aspectos de sua vida. Ele é vegetariano, e milita pela causa. Também nunca gostou de ostentar roupas de marca, mas não julga quem o faz. "Tem muita gente que nunca teve nada. Andava de camisa rasgada e chinelo. ‘Agora eu quero o mundo igual Cidadão Kane’."

Ele também é um dos partidários do boicote histórico dos Racionais à Globo e a grandes veículos de imprensa em geral. Foi apresentador do Yo! Raps, na MTV, emissora em que ele via "um canal mais aberto" para se portar do jeito que é e se comunicar sem ter que mudar o discurso.

Já a Globo, ele diz, é "mentiraiada". "Aquela programação chata para caralho, engessada, programa de playboyzão sem graça. Eu ia fazer o que lá? Cantar em cima da voz? Sai fora, nada a ver."

O DJ também critica a programação do Multishow, afiliada do canal. "Os eventos que eles fazem de música são horríveis. Brega, sem graça. A produção, a interação, as músicas, os apresentadores. Rede Globo, Record, SBT, sai para lá."

Hoje, ele vê que o boicote acabou fortalecendo os Racionais. Enquanto qualquer artista topava tudo para estar na maior emissora de TV aberta do país, o grupo recusou todos os convites. "A gente tem a rua. O termômetro é a rua. O hip-hop é a rua."

Uma das frases que marcam KL Jay é dizer que vive em território inimigo, se referindo à colonização e à consequente desigualdade racial do país.

Ele vê o Racionais como "a voz de quem nunca teve voz", mas afirma que o alcance do grupo se justifica não só pelo discurso. "É muito vivo até hoje, quase atemporal. A música é muito boa, agressiva e bem feita. Aí tem a atitude, as letras inteligentes, a postura. E falar ‘não’. Perdemos dinheiro, mas ficamos robustos, grandiosos."

"Tudo no Brasil foi montado para usufruto dos brancos", diz. "Os pretos ficaram em terceiro, quarto plano. Quando você entende isso, muda sua postura, seu jeito de andar. Sai na rua preparado e tem respeito."

Ele votou em Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, na última eleição, depois de ficar 18 anos longe das urnas. Isso porque não queria ver mais um mandato de Jair Bolsonaro, do Partido Liberal.

"Ele está colocando algumas pessoas pretas no ministério, mas se você for ver o alto escalão do PT é todo mundo branco. Tem esse lado governamental, social e econômico que é legal, me identifico. Mas os pretos continuam na favela, isolados, vivendo de qualquer jeito. Miserável, envolvido com droga, cachaça, fazendo filho de qualquer jeito, sem instrução, educação."

É resultado, ele diz, de uma "mentalidade de colônia" do "1% ou 2% que comanda de verdade o país". "São os donos de banco, de rede de TV, dos jornais. Esse pessoal tem muito dinheiro, e ditam as regras. Muitos deles têm mentalidade de donos de escravos. Você vê pela economia, pela taxa de juros."

Hoje, KL Jay diz que tem dois sonhos —um mundo vegetariano e livre do racismo. Ele reconhece avanços nas duas frentes, mas afirma que não vai estar vivo para ver essas transformações, caso aconteçam.

"Esse lance da autonomia preta está no ar", ele diz. "É como se fosse um bebê que começa a engatinhar e depois a andar. Depois que você anda, não volta mais a engatinhar."

Festival Sample

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