Descrição de chapéu Gal Costa

Como o disco 'Transa' tirou Caetano Veloso da depressão durante o exílio em Londres

Álbum que volta ao palco após 50 anos teve Jards Macalé, reggae, Brasil 'sampleado' e liberdade longe da ditadura

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Caetano Veloso e Jards Macalé em Londres, em 1971

Caetano Veloso e Jards Macalé em Londres, em 1971 Pedro Paulo Koellreutter

São Paulo

Quando Jards Macalé chegou a Londres em 1971, tomou um susto com o frio. "Caetano disse, ‘não se apavore que aqui é assim mesmo’."

Macalé não sabia se ficava mais ou menos encorajado com o aviso de Caetano Veloso, então exilado a um oceano de distância da tropicalidade que o forjou. Mas o céu de Londres é talvez o único aspecto cinzento daquele período que resultou em "Transa", lançado em 1972, e um dos álbuns mais celebrados do baiano.

Revisitado no palco pela primeira vez em 50 anos, o disco é movido por um senso de liberdade experimentado na distância da repressão dos anos de chumbo. Também é temperado pela espontaneidade dos encontros entre os músicos, e pela saudade de casa.

O cantor e compositor Caetano Veloso em 1971, ano em que fez 'Transa'
O cantor e compositor Caetano Veloso em 1971, ano em que fez 'Transa' - Acervo UH/Folhapress

As canções de "Transa" vão ser tocadas neste fim de semana, no festival Doce Maravilha, no Rio de Janeiro. O show de Caetano vai contar com Macalé e os percussionistas Tutty Moreno e Áureo de Souza, que gravaram o disco. A ausência é Moacir Albuquerque, baixista morto há 23 anos.

Antes de "Transa", Caetano "não conseguia gostar nada de estar fora do Brasil", ele diz à Folha. "Depois de fazer o primeiro disco lá —o que tem meu nome como título e 'London, London' como canção marcante—, decidi chamar meus amigos e grandes músicos."

Para Macalé, diretor musical do álbum, a força da obra está justamente no jeito que ela foi concebida. Caetano pediu a ele que coordenasse um "disco de banda", e a estética de "Transa" foi sendo desenvolvida nos encontros dos cinco com instrumentos em piqueniques nos parques ingleses e nos ensaios.

"Além do exílio, daquele momento, tem como cada um de nós chegou ao disco", diz. "Isso somado à história do próprio Caetano, que antes estava deprimido. Tudo se reflete na música. Ele está cantando muito bem. Cada um de nós está tocando muito bem, com uma esperança de voltar ao Brasil —e de apresentar uma coisa boa do Brasil fora do país."

No caso de Macalé, ele estava no Carnaval em Salvador quando Maria Bethânia chegou para lhe dizer que Caetano ligaria de Londres em meia hora. Antes de embarcar, e depois de aceitar o convite, ele ainda encontrou Áureo de Souza e lhe deu um recado.

"Eu tinha tocado num teatro em Copacabana, e o Macalé apareceu dizendo que ia a Londres porque Caetano o chamou. Estavam fazendo um disco e precisavam de uma banda", diz o baterista, que pediu à mãe que o incluísse numa viagem de turismo e ficou na Inglaterra com US$ 200 e o visto de um mês.

Áureo ganhava a vida em bandas de rock e de jazz na cidade, para onde, aliás, retornou ao longo dos anos 1970 convidado para tocar. Ele foi baterista de Belchior e Raul Seixas, mas não teve mais contato com Caetano depois de "Transa". Hoje, mora em Santana do Deserto, em Minas Gerais.

Enquanto Áureo era o baterista de Caetano, Tutty Moreno era o titular das baquetas de Gilberto Gil também em Londres. Ele queria ir para Nova York, mas acabou na Inglaterra também pelos baianos. "Já os conhecia, então fiquei fazendo ensaios com eles, mas não tinha ideia de disco", diz. "Até que Caetano mandou chamar Macalé e o baixista, o Moacir Albuquerque."

Albuquerque, conforme diz Caetano no livro "Verdade Tropical", faria o seu "contrabaixo baiano". Áureo e Tutty se dividiram nos batuques, Macalé tocou violão, e o time de "Transa" estava formado.

"Começamos a ensaiar numa igreja que ficava perto de minha casa no norte da cidade", diz Caetano. "Depois fomos para um espaço de ensaios num bairro mais animado. As canções me saíam com facilidade. Eu estava me sentindo quase fluente em inglês."

Aquela Londres, lembra Tutty, tinha "um sentimento de muito mais liberdade". "Era uma época barra pesada [no Brasil] e nós vivenciamos isso. Era sempre uma atenção muito grande. Chegando lá, era outra coisa, tinha tudo aquilo de Beatles, daquela época."

Era o rescaldo da Swinging London, o período em que a cidade vivia uma efervescência cultural e um ambiente libertário nos costumes. Em seu livro, Caetano descreve como se encantou por Mick Jagger no palco —"parecia uma labareda de significados cambiantes", "uma mulher, um macaco, um bailarino, um atleta, um moleque, um poeta romântico, um tirano, um doce camarada".

Os shows dos Rolling Stones eram, em suas palavras, "o teatro dionisíaco" e "a mais viva demonstração de entendimento do espírito da época".

A essa altura, Caetano deixava a tristeza capturada no álbum autointitulado de 1971, primeiro do exílio. Como canta em "Nine Out of Ten", estava voltando a se sentir vivo.

"Aprendi a gostar fisicamente de coisas para as quais nem dava atenção antes —os gramados dos parques, os bancos de madeira que havia em todos eles, a graça das ruas curvas, chamadas ‘crescents’, os táxis confortáveis", diz Caetano.

Algumas das letras em inglês do álbum descrevem esse período. Além das óbvias referências ao rock, "Nostalgia" —que tem gaita tocada por Angela Ro Ro— era uma brincadeira com o fato de Caetano viver num ambiente em que todos acordavam tarde.

Já "Nine Out of Ten" começa narrando um passeio por Portobello Road, então reduto da comunidade jamaicana em Londres. Bob Marley não havia lançado o clássico "Catch a Fire", e o reggae que tocava em meio às lojinhas com artigos do país era uma novidade.

A citação de Caetano ao reggae em "Nine Out of Ten" é provavelmente a primeira menção ao gênero em uma música brasileira. As levadas jamaicanas, no começo e no fim da faixa, foram feitas por Macalé —mas não sem antes fazer uma pesquisa de campo.

Ele diz que foi até Portobello Road, constatou que a maconha jamaicana era muito melhor que a inglesa e trocou um samba por um reggae. "O cara disse, ‘te ensino a batida do reggae se você me ensinar a do samba’. Aí aprendi aquela célula. Ensinei a do samba e ele ficou lá tentando. Acho que está tentando até hoje."

O produtor britânico Ralph Mace, que apostou em Caetano e Gil —por intermédio de Guilherme Araújo, então empresário da dupla—, havia pedido letras em inglês, e estava gostando mais dessa nova leva de composições. "Fiz as canções num inglês troncho, mas que eu via como metalinguístico", diz Caetano.

"Ralph Mace —que tinha recusado 'Lost in the Paradise' e 'Empty Boat'— achou as canções novas que fiz —ouvindo conselhos dele e de meu amigo americano David Linger, para corrigir defeitos gramaticais ou outros— boas. Ele já tinha aprovado 'London, London', 'Maria Bethânia' e outras que gravei no primeiro disco inglês. Mas achou as novas mais fluidas."

A saudade de casa se expressa nas citações a músicas brasileiras ao longo do álbum, num estilo de colagens —ou sample antes do sample existir. "Fiz chamados emocionados ao Brasil, roubando trechos de canções de Edu Lobo, de Vinícius, de Baden, de Zé do Norte, do folclore nacional", diz Caetano.

Após cerca de um ano convivendo juntos e desenvolvendo aquelas músicas, os cinco entraram em estúdio. Foi quase tudo gravado ao vivo, em não mais que dois ou três dias. Tutty define as sessões como harmoniosas e energéticas. "Foi tudo feito e gravado com muita liberdade. Uma criação feita de uma forma muito espontânea."

O trabalho maior para os europeus foi o de microfonar a percussão e os instrumentos brasileiros. Em "Triste Bahia", por exemplo, há três berimbaus com diferentes afinações.

"Foi tudo gravado ostensivamente sem clic", diz Caetano, citando o aparelho que marca mecanicamente o tempo para que os músicos não toquem mais devagar ou mais rápido. "Macalé construiu com a banda os arranjos que eu sugeria. Eu me sentia bem."

Ainda em 1971, Caetano veio ao Brasil e participou, com Gal Costa e João Gilberto, de um especial da TV Tupi em São Paulo, chamado "Chega de Saudade". "Mal completei o LP, soube, através da sobrenaturalidade de João Gilberto, que poderia voltar à minha terra. Vim logo. E deixei pra trás quaisquer planos que Mace tivesse para o disco ou para mim", diz Caetano.

Antes de voltar ao Brasil, eles ainda tocaram "Transa" em Londres, Paris e Amsterdã. "O Ralph Mace tinha um plano mirabolante de ocupar a Europa", diz Macalé. "Ele só não gostou que, logo que acabou o disco, abriu uma brecha para voltar ao Brasil —e ele ficou lá com o plano."

Possivelmente por uma mágoa de Mace, "Transa" acabou nunca sendo lançado na Inglaterra —ou, "que eu saiba, em nenhum outro lugar que não o Brasil", segundo Caetano. "Mas os brasileiros parecem adorá-lo. Eu gosto."

Ainda assim, o baiano diz que acha "gozadas" suas linguagem e pronúncia. "Quando gravei 'A Foreign Sound', décadas depois, o site Pitchfork elogiou tudo —menos a gravação da música de Dylan, da qual tirei o título do álbum", diz. "Mas 'Transa' nunca teve sequer sua existência registrada no mundo anglófono. Não que eu saiba. Tudo isso me interessa e me intriga. Acho óbvio que aglófonos não liguem pra esse disco, embora alguns liguem um pouco pra mim. E me comove que brasileiros o cultuem. Algo me é sugerido aí. O que será?"

Os artistas lembram que os shows no retorno foram abarrotados e apoteóticos. Eles chegaram em janeiro de 1972, antes até de o LP ser lançado, e se apresentaram no Teatro João Caetano, no Rio, e no Teatro da Universidade Católica, em São Paulo, antes de tocarem em Recife e Salvador.

O show deste domingo certamente não vai evocar aquela euforia da volta dos exilados ao Brasil. Mas marca a força daquela obra, que ainda ressoa mais de 50 anos depois.

Para Tutty e Áureo, a explicação da longevidade de "Transa" reside em um nome: Caetano Veloso. "É porque ele é o Caetano. E ponto final."

Festival Doce Maravilha

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