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Entenda como o Metallica faz turnê sem repetir setlist em shows de uma mesma cidade

Com palco em forma de rosquinha e quatro configurações de bateria, banda aposta na inovação após 42 anos de carreira

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Austin Considine
The New York Times

Em "Whiplash", de quatro décadas atrás, uma ode frenética da banda aos "headbangers", o guitarrista e vocalista James Hetfield brada "nunca vamos parar, nunca vamos desistir, porque somos o Metallica". De alguma forma, ao longo de quatro décadas marcadas pelo sucesso, mas também por mortes, vícios e por pelo menos uma quase implosão muito notória, a banda manteve a sua palavra.

Metallica em show no Global Citizen Concert, em Nova York, em setembro de 2022 - REUTERS

Neste ano, o Metallica lançou seu 11º álbum completo de estúdio, "72 Seasons". O disco de estreia da banda, "Kill 'Em All", também completou 40 anos, poucos dias antes de o quarteto chegar ao estado americano de Nova Jersey para o primeiro show de sua turnê mundial "M72" na América do Norte.

O Metallica não é a única banda a fazer turnês em estádios mesmo que seus integrantes já tenham passado dos 60 anos, mas nem toda banda ganha o pão tocando músicas que frequentemente ultrapassam as 190 batidas por minuto.

Essa tenacidade ficou evidente em uma noite de sexta-feira, no MetLife Stadium, quando a turnê chegou a East Rutherford. A bateria era pesada. Os riffs eram fortes. Os solos causavam frenesi na multidão de cerca de 80 mil espectadores de todas as idades, vestidos quase exclusivamente de preto.

Mas como uma banda consegue se manter em dia depois de tocar "Master of Puppets" 1.697 vezes no palco, de acordo com o baterista Lars Ulrich? A resposta é "sempre procurar uma nova mistura", afirma Ulrich, que prepara as setlists da banda no dia de cada show —uma "salvaguarda", acrescentou ele, "contra acabar no piloto automático".

Isso pode parecer óbvio, mas nem sempre foi assim. "Trinta anos atrás, levávamos muito a sério a execução de uma apresentação", afirmou Ulrich, por telefone, na semana passada, e o objetivo era acertar cada nota, "quase de forma robótica".

O Metallica —que também conta com o guitarrista Kirk Hammett e o baixista Robert Trujillo— começou a brincar com as músicas tocadas como bis e a tocar covers, à medida que seu catálogo crescia. Há cerca de 20 anos, na turnê "St. Anger", o grupo estabeleceu uma meta ambiciosa —nunca mais tocar a mesma setlist duas vezes.

Os shows da turnê "M72", que vai até setembro do ano que vem, são organizados em torno de "fins de semana sem repetição", com dois shows em cada cidade, cada qual com uma setlist diferente e bandas de abertura diferentes. (A banda tocará dois finais de semana na Cidade do México, onde a turnê termina.)

O palco tem a forma de uma rosquinha, com fãs em pé do lado de dentro e do lado de fora; a configuração permite que os membros da banda fiquem de frente para diferentes partes do público em momentos diferentes e conta com quatro disposições de bateria, o que cria diversas "primeiras filas".

Determinar a mistura da setlist é um assunto surpreendentemente complexo. As produções do Metallica são grandes, e o elaborado programa de pirotecnia, iluminação, som e vídeos intersticiais da banda, entre outros detalhes —o show de Nova Jersey incluiu uma queda de dezenas de bolas de praia gigantes, pretas e amarelas—, costumava desencorajar grandes mudanças na lista. Ter quatro kits de bateria, dessa vez, não simplificou as coisas.

Por fim, a banda desenvolveu o que Ulrich define como um sistema de "posições", baseado nos diferentes "grupos alimentícios" das canções da banda, uma referência à sensação e ao andamento delas.

A posição um (de 16) na turnê "M72", por exemplo, sempre será ocupada por uma música favorita dos fãs, com levada médio-rápida –o primeiro show do MetLife foi aberto por "Creeping Death", que tem um riff de abertura rapidamente reconhecível, não muito rápido ou complicado. Mas as músicas que ocupam esse espaço serão alternadas. A posição dez deve ser sempre uma balada, como "Nothing Else Matters". O encerramento é sempre "Master of Puppets" ou "Enter Sandman".

Ulrich também mantém dados cuidadosos sobre que músicas a banda tocou e onde e tenta adaptar a setlist a isso.

"Às vezes, a coisa se transforma em ciência", disse. "Estamos em Montreal agora, e eu terei na minha frente todas as informações sobre os últimos 20 anos em que tocamos em Montreal. E posso montar uma setlist na qual as músicas mais usadas não serão repetidas."

Certas músicas, como "Enter Sandman", "Master of Puppets" e "One", estão sempre na rotação. Ulrich disse que a banda as chama de "favoritas para bater o pé" —uma escolha estranha, e talvez irônica, de terminologia para descrever canções mais conhecidas por levar os fãs a sacudir suas cabeças violentamente.

Muitas bandas começam a se tornar menos hardcore quando envelhecem. Todos dizem que isso aconteceu com o Metallica mais de três décadas atrás, tempo suficiente para que o grupo revertesse completamente a tendência.

Como os dois outros discos mais recentes da banda, "72 Seasons" leva adiante o retorno do Metallica ao estilo trash metal que definiu seus primeiros anos, e a turnê do álbum seguiu essa tendência. Até agora, foram poucos covers e baladas e houve muita ênfase no rock pesado. Novas canções de puro metal como "72 Seasons" e "Lux Aeterna" se encaixam facilmente em setlists repletas de clássicos trash como "Seek & Destroy", de 1983, "Battery", de 1986, e "Blackened", de 1988.

Ulrich explicou em detalhes a setlist da primeira noite no MetLife e ajudou a decifrar algumas de suas anotações. Abaixo, trechos editados de nossa conversa.

'Creeping Death'

"Essa é uma das que chamaríamos de favoritas dos fãs e não é uma das que sempre tocamos. Tem uma energia muito boa no riff e fica em uma espécie de ritmo acelerado, sem ser tão rápida que se torne um rugido indistinguível. Mas tem boa acentuação, boa dinâmica. Tem uma quebra após o segundo refrão e o solo de guitarra, quando vai para uma parte gritada em que James deixa todo mundo bastante envolvido."

"O que torna uma canção boa para abrir um show? Porque, se você perguntar a cem pessoas, obterá cem respostas diferentes. Portanto, nada disso é ciência. Mas, depois de um tempo, você começa a descobrir instintivamente que tal canção talvez funcione melhor do que outra. Muitas vezes, quando você está em turnê divulgando um álbum, o padrão é abrir com a faixa de abertura do disco que serve de base para a turnê. Eu queria não fazer isso, de propósito, apenas para meio que nos desafiarmos."

'72 Seasons'

"A faixa ‘72 Seasons' é a música de abertura do último álbum e também é a faixa-título. Tem movimento real e muita energia, e acho que é realmente representativa e indicativa de nosso espaço mental, do clima e da energia do novo álbum. Portanto, parece uma ótima maneira de apresentar o que estamos fazendo atualmente."

"O título se refere aos primeiros 18 anos de uma vida; em linhas gerais, é basicamente a ideia de que as primeiras 72 estações de sua vida moldam a pessoa em que você se torna, para o bem ou para o mal —e, conforme você avança na vida, está tentando expandir essas experiências, ou talvez as abandonar, fugir delas."

'Fade to Black'

"Somos todos muito abertos sobre a situação em que estamos, nossos humores, e todos nós lidamos com vários níveis de saúde mental. E parece que isso é menos tabu do que era, digamos, 20 ou 30 anos atrás. Eu acho que James, cada vez mais, se sente muito confortável no palco e fala sobre como vai sua vida, como ele está se sentindo. Muitas vezes ele dispara 'Fade to Black' fazendo alguns comentários pessoais ou algo relacionado a como ele está naquele momento, no espírito de enviar boas energias para as pessoas que ouvem a canção em momentos de conflito."

"E a mensagem a transmitir é que a pessoa não está sozinha e que estamos juntos nisso. Sou filho único. Lutei a vida inteira contra a sensação de ser outsider, contra a solidão. E, você sabe, estar em uma banda, fazer shows e tudo isso é o melhor remédio para eu sentir que não estou sozinho."

'Orion'

"É um daquelas que nos últimos anos começamos a gostar mais de tocar; na verdade, abrimos com ela quando tocamos com os Rolling Stones. Tem uma paleta única e ilustra as diferentes inspirações e influências de composição que existem dentro da banda."

"Quando estamos tocando, o espírito de Cliff [Burton, o baixista original da banda, que morreu em um acidente de ônibus em 1986] está definitivamente presente no palco. E Robert canaliza o espírito de Cliff, em um papel que ele interpreta tão incrivelmente bem. É um momento lindo, lindo."

'Master of Puppets'

"‘Master of Puppets’ é na verdade a canção que mais tocamos ao vivo; tem feito parte de todas as turnês desde que a lançamos. Ela teve um impulso significativo e inesperado no ano passado, quando se tornou parte do episódio final de ‘Stranger Things’. E quem teria imaginado que uma música de 37 anos, com mais de oito minutos de duração e bastante pesada, ressoaria da maneira que faz com uma nova geração de ouvintes, mais jovens? Isso não é loucamente cool?"

O que você querem dizer com o sinal de 'hang'?

"É algo que usamos quando canções se emendam –quando não há um ponto final, vamos dizer. Não há silêncio. Portanto, significa apenas ficar em um acorde. E a próxima canção sai disso, e não de uma introdução vocal ou de uma fita."

As quatro baterias

"Esta é a primeira vez que fizemos um palco de 360 graus em um estádio. Tentamos decifrar o código por anos. Tudo o que fizemos sempre teve um ponto central. Estávamos de novo tentando resolver esse enigma, um ano atrás, e de repente pensamos 'calma lá, por que é que a banda precisa ficar no centro?'. E qual seria o oposto de a banda estar no centro? Seria os fãs estarem no centro. E foi aí que criamos o conceito do palco-rosquinha, onde você toca na "massa" da rosquinha e os fãs ficam no buraco. E com isso, bem, onde colocar a bateria? Daí surgiu o conceito dos quatro kits de bateria —um kit de bateria em cada uma das quatro direções diferentes. Foi assim."

"Sabe, tudo isso faz muito sentido quando você lê em um email ou rabisca em um guardanapo. Nove meses depois, você se vê no local do primeiro show tentando descobrir o que está fazendo."

Tradução de Paulo Migliacci

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