Descrição de chapéu The New York Times

Conheça a Berghain, boate de Berlim onde techno e música clássica colidem

Casa noturna tem inspirado músicos na Alemanha e promove experiências de imersão cheias de referências a drogas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jeffrey Arlo Brown
Berlim | The New York Times

Em 2018, após uma visita ao Berghain, uma casa noturna techno muito famosa em Berlim, o saxofonista e curador Ryan Muncy ligou para a compositora Ash Fure, uma amiga e colaboradora. "Deus falou comigo nos subwoofers", disse Muncy. "E mandou que eu trouxesse Ash Fure a ele."

A casa noturna Berghain, em Berlim - Stefanie Loos/AFP

Não demorou para que Fure, na época detentora de uma bolsa de pesquisa na Academia Americana em Roma, embarcasse em um avião para Berlim. Ela e Muncy foram diretamente para o Berghain. "Lembro muito vividamente cada detalhe", diz Fure, em uma entrevista por vídeo. Ela se lembra de ver os frequentadores da casa noturna tirando seus casacos e revelando figurinos futuristas.

Fure vasculhou a arquitetura labiríntica da casa, descobrindo pontos de vista a partir dos quais podia ver e ouvir. Ela se posicionou bem ao lado do famoso sistema de som Funktion-One, se deixando envolver pelo volume altíssimo mas sem nunca sentir dores nos ouvidos. Naquele dia, ela ficou no Berghain por 14 horas. "Tudo aquilo teve um efeito louco de deslocamento", diz.

De volta a Roma, Fure sentiu que a experiência tinha ficado com ela. "Era uma sensação de espiral", afirma. "Eu continuava girando e girando e me aprofundando mais e mais naquele lugar."

Músicos clássicos não são presença rara em casas noturnas. Em 2001, a gravadora Deutsche Grammophon criou uma série de concertos, "Yellow Lounge", que incluía apresentações em casas como o Berghain.

Separadamente, artistas clássicos também costumam frequentar as "Klubnächte" —noites de clube—, um evento techno do Berghain, uma rave com origens estranhas que atrai locais e peregrinos de todo o mundo, e que frequentemente dura da meia-noite de sábado até o fim da segunda-feira. Os participantes emergem encorajados e inspirados.

Quando Fure foi pela primeira vez ao Berghain, uma apresentação de "The Force of Things: An Opera for Objects", de 2017, que ela tinha criado com seu irmão arquiteto, Adam Fure, um ano antes, estava fresca em sua mente. O trabalho utilizava subwoofers, cabos de aviões, vocalistas, instrumentos e um design de set e coreografia abstratos para dramatizar a vasta escala da mudança no clima.

Fure se sentia em casa naquele gênero, em algum lugar entre a ópera contemporânea abstrata e a arte sonora, mas, como muitos compositores, tinha de conciliar seus interesses e as pressões financeiras de uma carreira tradicional.

Em 2012, Fure tinha começado a produzir o que descreveu como "uma obra encorpada e multissensorial". Mas, ela diz, "eu em seguida voltava atrás e tentava criar mais algumas encomendas, e conseguia ganhar algum prêmio que me dava acesso a recursos". "Isso me permitia fazer mais uma daquelas coisas estranhas e selvagens, e em seguida eu precisava continuar vivendo aquele ciclo."

A experiência no Berghain há cinco anos encorajou Fure a se concentrar de forma resoluta nas suas composições imersivas. "De muitas maneiras, aquilo parecia ser a concretização de muitos desses desejos mais privados de som, experiência e coletividade. Parecia a confirmação de que era possível."

Instalação 'Eleven Songs' no Berghain Club em Berlim - Axel Schmidt - 31.jul.2020/Reuters

Essa confirmação vem sendo uma experiência comum para compositores que visitam o Berghain. Em 2015, um amigo de Wojtek Blecharz o levou à casa noturna para o seu aniversário. Tal como Fure, o compositor Blecharz, de 41 anos, estava interessado na fisicalidade do som e insatisfeito com a previsibilidade de um concerto clássico típico. E o tempo que ele passou no Berghain literalmente arrepiou seus cabelos.

"Sou bastante cabeludo", ele disse em uma entrevista. "E senti todos os cabelos do meu corpo vibrando com aquela energia maciça. Eu conseguia mergulhar no som. Era quase capaz de tocar nele, de flutuar nele. Foi uma das experiências mais belas da minha vida, como músico treinado na tradição clássica."

Blecharz canalizou o lado tátil da música techno do Berghain em "Body Opera", uma instalação de ópera que pode receber até cem espectadores de cada vez e que estreou no Reino Unido, no Festival de Música Contemporânea de Huddersfield, em 2016.

Cada espectador recebia uma esteira de ioga, um cobertor e uma almofada equipada com um alto-falante transdutor integrado. Tocar a almofada enviava ondas sonoras diretamente para o corpo do ouvinte. "Percebi que seria bom criar formas análogas de traduzir aquela experiência, quando se vai lá pela primeira vez e se ouve aquela onda de som que nos abraça", afirma Blecharz.

"Body Opera" inclui uma referência a drogas, que alguns consideram essenciais ao delírio. Blecharz pediu aos membros da audiência que consumissem um pó branco e cristalino de um pequeno saco hermeticamente selado. Era um confeito chamado Pop Rocks, mas os participantes não sabiam disso com antecedência; a ideia era que ficassem sensibilizados com o som dos estalidos do açúcar e percebessem o efeito ressonante em suas bocas.

Quando o violonista Liam Byrne, de 40 anos, começou a ir ao Berghain, em 2017, notou um paralelo surpreendente entre a dança techno e a coreografia barroca estilizada. Os passos da dança barroca, ele diz, são muitas vezes as formas mais eficazes de se mover em uma determinada velocidade, em um "groove" específico.

Na casa noturna, ele percebeu que os dançarinos adaptavam os seus movimentos aos diferentes tempos de uma forma comparável. Enquanto falava, Byrne abanava os ombros para trás e para a frente em sua cadeira para demonstrar um passo adequado ao techno rápido que toca no piso principal do Berghain.

Lá em cima, no Panorama Bar, onde o ritmo é normalmente um pouco mais lento, os dançarinos preferem um movimento mais vagaroso, uma espécie de passo a passo.

"É exatamente como a dança barroca", diz Byrne. "É o ‘pas de bourrée’, o ‘pas de gavotte’." E acrescenta que "esses tipos de movimentos são expressões perfeitas ou casamentos perfeitos com tipos muito específicos de sensação rítmica".

Grande parte do repertório barroco que Byrne toca faz alusão a formas de dança. O techno do Berghain o ajudou "a compreender a importância de sua responsabilidade ao tocar música de dança —fazer alguém querer se mover, porque é uma forma de dar ao ouvinte poder de agência na música, o convidando a entrar".

"Você cria um ‘groove’ em que o ouvinte se encaixa", afirma Byrne. "Depois, eles são parte da peça com você. E isso desperta mais atenção à maneira exata pela qual você está mantendo aquele trinado."

Depois de completar o seu programa de pesquisa em Roma, em julho de 2018, Fure recebeu uma bolsa do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico e se mudou para Berlim, onde continuou a visitar o Berghain. Em 2020, integrou as experiências que viveu no clube a uma nova obra, "Hive Rise", com a artista e coreógrafa Lilleth.

Nela, um grupo de intérpretes cria som com megafones impressos em 3D e se movimenta em padrões abstratos pelo espaço, com uma coreografia e trajes futuristas que fazem lembrar os dos frequentadores do clube Berghain.

"Hive Rise" estreou no Berghain. "Foi uma loucura poder retribuir a toda aquela arquitetura que tinha sido tão transformadora para mim e para tantas pessoas que eu amo", diz Fure. "Foi uma sensação tão incrível ter o meu som passando por aqueles alto-falantes."

Em outubro deste ano, Fure vai estrear uma nova obra imersiva, "Training Ground: A Listening Gym", no Centro Schwarzman da Universidade Yale. A compositora continua a explorar os caminhos que o Berghain abriu para ela.

"Penso no som realmente como uma tecnologia social e como uma tecnologia somática e uma ferramenta do rebanho e uma ferramenta da espécie", diz Fure. "O Berghain ativa essa tecnologia de uma forma extremamente potente, que foi muito formativa e muito singular em minha vida."

Tradução Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.