Museu Metropolitan recebe quadro do século 19 que escondia criança escravizada

Imagem de jovem de ascendência africana foi encoberta e apagada da obra por motivos ainda desconhecidos

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Alexandra Eaton
The New York Times

Durante muitos anos, uma pintura do século 19 que mostrava três crianças brancas em uma paisagem da Louisiana guardou um segredo. Sob uma camada de tinta sobreposta para representar o céu, havia a figura de um jovem escravizado.

A imagem do jovem de ascendência africana, encoberta por motivos ainda não especificados, foi apagada da obra na virada do século passado e ficou esquecida por décadas em sótãos e no porão de um museu.

Imagem do quadro 'Bélizaire e as Crianças Frey', obra atribuída a Jacques Amans - Elliot de Bruyn/The New York Times

Mas uma restauração em 2005 revelou a figura, e agora o quadro tem um novo, e proeminente, lar no Museu Metropolitano de Arte de Nova York (Met).

"Há 10 anos eu queria adicionar uma obra como essa à coleção do Met", disse Betsy Kornhauser, curadora de pinturas e esculturas americanas que comandou o aquisição, "e foi essa a obra extraordinária que apareceu".

Kornhauser disse que o museu adquiriu a obra, conhecida como "Bélizaire and the Frey Children", este ano, como parte de um esforço ampliado para reformular a maneira pela qual o Met conta a história da arte americana.

O quadro, atribuído a Jacques Amans, retratista francês que pintava a elite da Louisiana, será exibido na ala americana do museu a partir do final deste ano e uma vez mais no ano que vem, durante a comemoração do centenário da ala.

Um dos motivos pelos quais "Bélizaire and the Frey Children" chamou a atenção é a representação naturalista de Bélizaire, o jovem de ascendência africana que ocupa a posição mais alta no quadro, encostado em uma árvore, logo atrás das crianças Frey.

Embora ele permaneça separado das crianças brancas, Amans o pintou em uma postura poderosa, com bochechas coradas e uma indicação de vida interior incomum para a época.

Desde o movimento Black Lives Matter, o Met e outros museus vêm respondendo a apelos para que reavaliem a apresentação de figuras negras.

Imagem do quadro 'Bélizaire e as Crianças Frey', obra atribuída a Jacques Amans - Selina McKane/Christies via The New York Times

Quando as galerias europeias do museu foram reabertas em 2020, este posicionou textos nas paredes para destacar a presença de africanos na Europa e chamar a atenção para questões de racismo, que antes não eram mencionadas.

Na ala americana, que antes apresentava "uma história romantizada da arte americana", disse Kornhauser, um retrato presidencial foi reformulado levando em conta a conscientização que existe agora.

O retrato de George Washington e seu servo escravizado William Lee, pintado por John Trumbull em 1780, só identificava o ex-presidente, até 2020, quando o nome de Lee foi adicionado ao título. No entanto, ao contrário de Bélizaire, Lee é retratado à margem, sem qualquer emoção ou humanidade.

Jeremy Simien, um colecionador de arte de Baton Rouge, Louisiana, passou anos tentando encontrar "Bélizaire" depois de ver uma imagem online em 2013, após a restauração do quadro, que mostrava todas as quatro figuras.

Intrigado, ele continuou pesquisando, e acabou encontrando uma imagem anterior, de 2005, depois que o quadro havia sido retirado do Museu de Arte de Nova Orleans e incluído em uma lista de venda pela casa de leilões Christie's. Era a mesma pintura, mas o jovem negro estava ausente. Ele estava encoberto por uma camada de tinta.

"O fato de ele ter sido encoberto me assombrou", disse Simien em uma entrevista.

Durante anos, Simien procurou a pintura em registros de leilões antigos, catálogos e arquivos de fotos. Ele perguntou a amigos se alguém havia visto o quadro, e uma pessoa terminou respondendo que sim, em uma loja de antiguidades na Virgínia. Com base nessa informação, Simien rastreou o quadro e o encontrou em uma coleção particular em Washington, e acabou comprando-o por uma quantia não revelada.

Na época, ele não sabia quem eram as pessoas no retrato. Mas foi atraído pela história do jovem negro e pela tentativa de apagá-lo.

"Sabíamos que precisávamos descobrir quem era ele, como filho da Louisiana", disse Simien, "e como uma pessoa digna de ser lembrada ou conhecida".

Simien contratou Katy Morlas Shannon, uma historiadora da Louisiana que pesquisa a vida de indivíduos escravizados. Ela descobriu as identidades de todos no retrato e usou registros de propriedade e do censo para encontrar o nome do jovem cuja imagem havia sido encoberta: Bélizaire.

Com base nisso, Shannon reuniu os detalhes da vida de Bélizaire. Ele nasceu em 1822 no bairro francês de Nova Orleans. Sua mãe se chamava Sallie. Seu pai é desconhecido. Bélizaire tinha outros irmãos e irmãs - todos, exceto um, foram vendidos.

Quando tinha seis anos, Bélizaire e sua mãe foram vendidos a Frederick Frey, um banqueiro e comerciante que, com sua esposa, Coralie, e sua família, morava em uma grande casa no bairro francês, na Royal Street, e era dono de vários escravizados.

Bélizaire é listado como empregado doméstico e sua mãe como cozinheira, funções que os mantinham próximos à família.

Os registros sugerem que o retrato foi pintado por volta de 1837, quando Bélizaire tinha 15 anos. Ele foi a única pessoa na pintura que sobreviveu até a idade adulta. Duas irmãs Frey, Elizabeth e Léontine, morreram no mesmo ano, provavelmente de febre amarela. O irmão delas, Frederick, morreu alguns anos depois.

Quase 20 anos mais tarde, depois que os negócios do velho Frederick Frey faliram e ele morreu, sua viúva vendeu Bélizaire para a Evergreen Plantation. Shannon, que era funcionária da plantação na época de sua pesquisa, disse que ele é a única pessoa escravizada na plantação da qual existe uma imagem.

Bélizaire foi listado nos inventários até 1861, quando começou a guerra civil. Logo depois, Nova Orleans caiu nas mãos do exército da União.

"Será que ele sobreviveu à guerra civil e viveu o suficiente para experimentar a liberdade?" disse Shannon. "Não sabemos, porque não encontramos informações".

O retrato permaneceu na família Frey por mais de um século. Não se sabe ao certo quando a imagem de Bélizaire foi encoberta, mas Craig Crawford, um restaurador que fez trabalhos adicionais de restauro no ano passado, estima que, com base no padrão de rachaduras da tinta, a imagem foi encoberta por volta de 1900.

Não se sabe quem fez isso e por que, mas sabe-se que a segregação se aprofundou na Nova Orleans da virada do século 20. Shannon disse, sobre a época: "Nenhuma pessoa branca de posição social significativa em Nova Orleans, naquela época, gostaria de ter uma pessoa negra retratada ao lado de sua família em uma parede da casa".

Na década de 1950, Eugene Grasser, tataraneto de Coralie Frey, se lembra de ter pego o quadro no sótão de uma tia idosa, com seu pai, e o amarrado no teto do carro (junto com outro retrato de família mais tarde identificado como obra de Jacques Amans). Eles o guardaram em uma garagem atrás da casa de seus pais.

Em 1971, a mãe de Grasser lhe ofereceu a obra, mas o quadro não combinava com a decoração modernista de sua casa. Assim, a obra foi doada ao Museu de Arte de Nova Orleans.

Fotografias do quadro, cujo título na época era "Three Children in a Landscape", ou seja, "Três Crianças em uma Paisagem", mostram uma quarta figura fantasmagórica. De acordo com documentos do museu, o retrato continha a imagem "do escravizado que cuidava das crianças".

O museu de Nova Orleans não limpou nem restaurou a pintura e a manteve armazenada por 32 anos, até retirá-la do acervo.

O ex-diretor do museu, John Bullard, disse que a decisão de vender o quadro ocorreu em uma época na qual crianças não eram identificadas em pinturas, e o artista era desconhecido.

"O quadro não estava em condições de ser exibido", ele acrescentou, "portanto, o museu teria que investir uma certa quantia para recondicioná-lo totalmente". "Em retrospecto, acho que foi um erro", ele admitiu. "Erros acontecem".

Em um leilão, a pintura foi vendida por US$ 6 mil a um negociante de antiguidades da Virgínia que estava interessado em saber o que poderia haver sob a imagem. Ele pediu a uma restauradora, Katja Grauman, que fizesse uma limpeza para testar.

Ela tratou de pequenas áreas onde parecia haver uma figura sob a camada superficial, e primeiro revelou um casaco e depois um rosto. "Restauramos muitos retratos americanos de crianças e muito raramente vemos uma pessoa negra neles", ela disse.

Mais tarde, o negociante vendeu a pintura para um colecionador particular em Washington, onde Simien a encontrou em 2021.

O Museu de Arte de Nova Orleans, que àquela altura estava ciente de que a figura do jovem escravizado havia sido descoberta, expressou entusiasmo por readquirir a obra, disse Simien, mas ele ficou frustrado por a instituição não ter agido mais rápido, e comprou o quadro ele mesmo.

Mia Bagneris, professora de história da arte e estudos africanos na Universidade de Tulane, que ministrou uma aula sobre "Bélizaire", classificou a decisão do museu de retirar a obra do acervo e não retificar o erro como "inconcebível" e disse que o museu tinha a responsabilidade de garantir que sua equipe, seu conselho e sua coleção representassem "todas as pessoas que vivem aqui".

Nem o Met nem Simien revelaram quanto o museu pagou pelo retrato da família Frey. Mas retratos de pessoas de ascendência africana pintados no século 19, mesmo quando a identidade das pessoas retratadas não é conhecida, têm obtido preços altos.

Em janeiro de 2023, um retrato de duas meninas, uma branca e uma afro-americana, foi vendido na Christie's por pouco menos de US$ 1 milhão. Em maio de 2022, em um leilão na Carolina do Norte, um retrato de uma mulher negra livre foi vendido por US$ 984 mil para o Museu de Belas Artes da Virgínia, em Richmond.

O Met planeja investigar a pintura da família Frey para saber mais sobre a vida de Bélizaire. O que levou à sua inclusão em um retrato de família tão íntimo? Ele sobreviveu à guerra civil? Existem descendentes?

Mas a identificação de Bélizaire, cuja imagem havia sido deliberadamente apagada, já é uma descoberta surpreendente. Os funcionários do Met disseram que a pintura é, na verdade, o primeiro retrato naturalista na ala americana que mostra uma pessoa negra de identidade conhecida em uma paisagem sulista.

"Ter todas as informações documentadas sobre esse jovem que aparece no retrato é realmente extraordinário", disse Kornhauser.

Isso foi crucial para a decisão do Met de adquirir a obra. Sem os esforços de Simien e Shannon para descobrir a identidade de Bélizaire, o quadro provavelmente ainda estaria em uma coleção particular, fora de vista, esperando para ser revelado.

Tradução de Paulo Migliacci

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