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'Apanhadora de Pássaros' é narrativa 'infamiliar' que lembra Toni Morrison

Gayl Jones, referência na literatura negra americana, estreia no Brasil com um livro nada convencional

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Maria Carolina Casati

Escritora e professora, é mestre em letras e doutoranda na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo

Apanhadora de Pássaros

  • Preço R$ 74,90 (224 págs.)
  • Autoria Gayl Jones
  • Editora Instante
  • Tradução Nina Rizzi

À primeira vista, "Apanhadora de Pássaros", da americana Gayl Jones, pode parecer um livro esquisito. De fato, nem mesmo sua chegada ao mundo foi convencional: a obra foi publicada originalmente em alemão, em 1986, e só em 2022 os leitores de inglês, língua materna da autora, puderam conhecer o texto.

ilustração de duas mulheres negras, uma de turbante e outra de faixa na cabeça, sob o sol em tons fortes de amarelo, laranja, verde e marrom
Ilustração de Cássia Roriz para a capa de 'Apanhadora de Pássaros', de Gayl Jones - Cássia Roriz/Divulgação

Finalista do National Book Award no ano passado, a obra é a primeira publicação da autora no Brasil. Nela, a romancista, poeta, professora e crítica literária de 73 anos conta a história de Amanda Wordlaw —que tem "lei" e "palavra" no nome—, ao lado de Catherine Shuger e seu marido Ernest —ambos com comportamentos que lembram o gosto do açúcar: ele, doce e gentil, e ela, amarga, como quando o caramelo passa do ponto.

Logo nas primeiras páginas, a narrativa de Jones lembra a de Toni Morrison —que editou seu primeiro romance, "Corregidora", de 1975. Em "O Olho Mais Azul", Morrison entrega o final do livro na página dois, dizendo que gostaria de escrever uma história na qual os leitores quisessem saber como tudo aconteceu e não o que houve.

Assim, é possível saber que "Catherine, vez ou outra, tenta matar o marido". "É assim há anos: ele a interna numa clínica, acha que está bem, tira ela de lá, e ela tenta matá-lo."

Mas conforme a leitura avança, é possível constatar que Amanda, a narradora, não entregará tão facilmente como os eventos se deram. E é aí que as coisas ficam estranhas.

Em uma narrativa não linear, ao mesmo tempo em que relata sua convivência intensa com o casal, Amanda relembra algumas viagens que realizou. Ao descrever essas experiências, a narradora —que se apresenta como ficcionista e autora de livros de viagens, cujos destinos incluem o Brasil— fala sobre amor, sexo e relacionamentos. Sobre amor e sexo, aliás, parece falar muito mais do que praticar.

O que Amanda revela de si é só o que deseja que seus leitores saibam. É acerca do triângulo (amoroso?) que vive com Catherine e seu marido Ernest que a maior parte da narrativa se desenvolve.

mulher negra jovem sentada em foto em preto e branco
A escritora Gayl Jones, conhecida pela reclusão, fotografada em 1971 durante a faculdade - Connecticut College Yearbooks/Wikimedia

De acordo com Freud, a palavra "infamiliar" diz respeito "ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror". Além disso, "o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante que remete ao velho conhecido, há muito íntimo".

É esse sentimento de estranhamento que a leitura do texto evoca. Por que Ernest continua com Catherine a despeito de todas as tentativas de assassinato? Por que Amanda permanece lá? Por que Amanda não fala do marido? Ao mesmo tempo em que a sensação de "infamiliaridade" se intensifica, a angústia do não saber faz com que a leitura só seja interrompida em caso de extrema necessidade. O texto não é esquisito, é "infamiliar".

É interessante observar a relação entre essa palavra-conceito de Freud, que pode definir um dos sentimentos que o livro provoca, e fato de a obra ter sido publicada inicialmente em alemão.

Efetivamente, Jones parece interagir também com a produção de outras autoras negras que são suas contemporâneas, como Alice Walker, Octavia E. Butler e Audre Lorde. Em relação à autora de "A Unicórnia Preta", aliás, é possível estabelecer forte conexão com o conceito cunhado por ela de "irmã outsider".

Amanda é essa "estrangeira de dentro", negra como Catherine, uma mulher das artes como a amiga, alguém que vive e viveu experiências análogas. É também na escrita de Catherine que Amanda se constrói.

Em 222 páginas, Jones monta uma cadeia de relações tão múltiplas quanto os destinos percorridos pelos protagonistas. Talvez esse seja um dos grandes méritos do livro: numa escrita tão surreal quanto as vidas de Amanda, Catherine e Ernest, a narrativa conecta ficção e realidade, amor e loucura, pulsão de vida e de morte. Vale a pena se deixar levar pela angústia e pela curiosidade para ter o coração e a mente apaziguados ao final.

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