Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow
Descrição de chapéu The New York Times

Divisão de classes nos EUA remete a rebelião sangrenta da Guerra Civil

Assim como em 1863, supremacia branca, medo de recém-chegados e fervor antigoverno ainda estimulam radicalização

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The New York Times

Há exatos 160 anos Nova York foi palco de uma das rebeliões mais violentas da história dos Estados Unidos. Foi a Rebelião do Alistamento Militar de 1863, no meio da Guerra Civil.

Nova York na época estava longe de ser o reduto progressista monolítico em que se converteu desde então. Sua economia se beneficiava fortemente da economia escravista e do algodão produzido por ela. E, embora a abolição da escravidão no estado tenha se concretizado em 1827, nas décadas subsequentes, como destacou a historiadora Sylviane A. Diouf, a cidade passou a dominar o tráfico ilegal de escravos para o Sul dos EUA, o Brasil e Cuba.

O prefeito de Nova York na época, Fernando Wood, era um democrata favorável ao Sul e à escravidão que chegou a propor que a cidade se separasse da União em 1861, depois de a Carolina do Sul ter se tornado o primeiro estado a fazê-lo, no ano anterior.

Homens e mulheres negros durante evento político em dia de eleições em Nova York, nos EUA - Alex Kent - 8.nov.22/Getty images/AFP

Conhecidos como copperheads (nome de uma espécie de víbora), democratas conservadores que se opunham à Guerra Civil estavam furiosos com a guerra e eram adversários declarados das políticas de guerra de Abraham Lincoln. Eles encaravam os abolicionistas como agitadores e viam seu chamado para abolir a escravidão como uma afronta aos direitos dos estados. Muitos copperheads achavam que a secessão era constitucional, e a guerra, um erro. Isso porque, como explica a historiadora Jennifer L. Weber no Journal of the Abraham Lincoln Association, "a Constituição [como eles pontuaram corretamente] não diz nada sobre os termos de filiação à União".

Assim, os copperheads e sua imprensa lançaram campanhas racistas incansáveis que inflamaram os ânimos dos brancos pobres e da classe trabalhadora. Eles propunham uma espécie de "teoria da grande substituição" da época, alegando que, uma vez que os negros fossem libertos, multidões deles invadiriam Nova York e competiriam com os brancos por empregos, ameaçando o modo de vida dos brancos.

Quando Lincoln divulgou a proclamação preliminar de emancipação dos escravos, em 1862, isso reforçou a paranoia da substituição. O editor de um jornal Copperhead de Long Island escreveu na época que, "em nome da liberdade para os negros", a proclamação "coloca em risco a liberdade dos homens brancos".

Então, quando foi aprovada a Lei de Alistamento Militar de 1863, instituindo o primeiro alistamento nacional obrigatório, as tensões transbordaram em cinco dias de revolta sangrenta. Mais de cem pessoas morreram, embora alguns acreditem que na realidade houve centenas mais de mortos que isso.

A rebelião foi antigoverno porque o governo estava forçando as pessoas a participar de uma guerra à qual elas se opunham totalmente. Foi antinegros, porque fobias racistas tinham sido incutidas nos revoltosos. E foi antielitista porque outro motivo de tensão foi o fato de que pessoas ricas podiam comprar sua isenção do recrutamento mediante o pagamento de US$ 300, um valor que estava completamente fora do alcance da maioria dos homens de classe trabalhadora.

Os brancos de classe trabalhadora tinham sido radicalizados por supremacia branca, tribalismo racial, medo de recém-chegados e fervor antigoverno.

Muita coisa mudou desde 1863, mas os artifícios empregados para dividir e provocar permanecem –uma maneira de separar os brancos da classe trabalhadora não branca, alimentando uma combinação de queixas contra quem vem de fora, contra o governo e contra as elites ricas que estariam beneficiando seus próprios interesses em detrimento daqueles dos cidadãos "comuns" (ou seja, brancos).

Durante boa parte da história americana, o santo graal da política e do ativismo progressista tem sido encontrar uma maneira de superar essas divisões, de fazer as pessoas pobres e de classe trabalhadora de todas as raças entenderem que seu destino e seus interesses estão interligados.

Mas a questão racial foi na época e ainda é hoje uma ferramenta poderosa para dividir a classe trabalhadora. Isso não quer dizer que não seja possível construir uma coalizão ou que isso nunca tenha sido realizado. Durante o realinhamento dos anos 1930 criado pelo New Deal, os democratas construíram uma coalizão que apoiava a classe trabalhadora, pelo menos até certo ponto independentemente de raça. Não era perfeita, é claro, porque ainda se ajustava aos interesses dos democratas racistas no Sul, mas era uma coalizão.

Essa coalizão começou a se fragmentar na década de 1960 com as vitórias do movimento pelos direitos civis. Líderes negros desde então vêm se esforçando para reerguer a coalizão, desde a Campanha das Pessoas Pobres lançada por Martin Luther King Jr. no final dos anos 1960 e da National Rainbow Coalition de Jesse Jackson, fundada nos anos 1980, até o foco do reverendo William Barber sobre "coalizões de fusão", saída de sua campanha das Segundas-Feiras Morais lançada em 2013 para protestar contra a virada legislativa para a extrema direita na Carolina do Norte.

Políticos progressistas desenvolveram outro método de construção de coalizões que às vezes funciona: um bilinguismo cultural que procura comunicar-se com a classe trabalhadora branca e os liberais altamente instruídos, em seus próprios termos e usando suas respectivas linguagens.

Mas, à medida que as forças do intelectualismo e daquilo que acabamos designando como "diversidade" foram ganhando poder crescente no Partido Democrata, eleitores brancos sem instrução universitária têm abandonado o partido. Como destacou Nate Cohn no NYT em 2021, após a vitória de Joe Biden: "Quando John F. Kennedy, diplomado em Harvard, conquistou a Presidência por margem estreita em 1960, ele ganhou a adesão dos eleitores brancos não diplomados mas perdeu por 2 a 1 entre os universitários brancos. Os números foram quase exatamente invertidos no caso de Biden, que perdeu por 2 a 1 entre os eleitores brancos sem diploma universitário, mas ganhou entre os brancos com formação universitária".

Segundo uma análise do jornal Politico, em 2020 Donald Trump ganhou em espantosos 96% dos distritos em que 70% ou mais dos habitantes eram brancos e menos de 30% tinham formação superior.

Essa bifurcação partidária do voto branco vem sendo chamada de "divisão do diploma", mas é mais que isso. Frequentemente ela também representa uma falta fundamental de conhecimento, algo que incentiva a hostilidade à verdade, que por sua vez prepara o terreno para a disseminação de teorias conspiratórias, promoção do ódio, radicalização extremista e episódios de terrorismo.

Lembro mais uma vez que 1863 faz parte do passado distante. Mas alguns temas daquela era se infiltram pelas beiradas do discurso conservador, e às vezes não apenas pelas beiradas: a afirmação crescente e o ocasional endosso da teoria da "grande substituição". Os chamados –ainda periféricos, mas crescentes— pela secessão ou guerra civil. O medo do outro, quer ele assuma a forma de um escravo liberto ou de alguém que ingressa no país atravessando a fronteira sul. A vilificação rotineira do governo e a desconfiança crescente em relação a ele, e em especial de seus esforços para promover a igualdade racial.

Não há rebeliões raciais antinegros começando a tomar forma em Nova York. Mas uma raiva e um mal-estar familiares e antigos estão crescendo, e isso é profundamente preocupante.

Tradução de Clara Allain 

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