Descrição de chapéu Livros

Onda de livros sofisticados faz autoajuda deixar de ser um palavrão nas livrarias

Obras ganharam impulso com busca por bem-estar depois da pandemia e promessas mais realistas feitas para os leitores

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

'Hope', de George Frederic Watts

Detalhe da pintura 'Hope', de George Frederic Watts Reprodução

Carolina Ruhman Sandler
São Paulo

Quando a psicanalista Ana Suy descobriu que seus livros estavam dispostos na seção de autoajuda das livrarias, a primeira sensação foi vergonha.

"Eu me perguntava: como é que vim parar aqui?", diz aos risos. A percepção de Suy, autora do livro "A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão", do selo Paidós, não é isolada. "Autoajuda sempre foi sinônimo de palavrão", afirma Tomás da Veiga Pereira, publisher da Sextante.

Mas alguém mexeu nesse queijo. Nos últimos anos, o mercado editorial começou a priorizar um tipo de livro que não depende de depoimentos pessoais, mas sim de pesquisas extensas. "A grande mudança, de fato, é essa produção cada vez mais informada por acadêmicos, estudiosos e doutores", aponta Pereira.

O mercado ainda tem dificuldade de classificar estes títulos, vistos como híbridos. "Essas obras ganharam o status de autoajuda sofisticada", afirma Mônica Peçanha, gerente de compras da Livraria da Travessa. Livros que poderiam estar nas seções de filosofia ou psicologia agora habitam as prateleiras de autoajuda por conta de um formato mais acessível.

Ainda assim, muitos leitores enxergam o gênero com implicância, de acordo com Bruno Porto, fundador da agência de influencers BP Ideias, que aponta um certo preconceito com o termo autoajuda. "Algumas pessoas chamam de não ficção, outras de desenvolvimento pessoal."

Um fator crucial que diferencia essa safra de lançamentos de obras mais clássicas do gênero como "Os Segredos da Mente Milionária", de T. Harv Eker, é que agora não há mais a promessa de que o livro é o suficiente para solucionar as agruras da vida do leitor.

"A nova onda da autoajuda traz mais contexto e sutileza e até, eventualmente, problematiza as questões que o livro não vai conseguir resolver sozinho", explica a editora Quezia Cleto, uma das responsáveis pelo selo Fontanar, da Companhia das Letras. Nenhuma obra se propõe a acabar com as angústias do leitor com a crise do clima ou a desigualdade econômica.

Nas mesas de mais vendidos, livros com fórmulas sobre produtividade como "O Milagre da Manhã", de Hal Elrod, da BestSeller, dividem espaço com títulos como "Quatro Mil Semanas", de Oliver Burkeman, que parte do pressuposto que o nosso tempo é finito e é impossível fazer tudo aquilo que desejamos. Segundo o argumento, o problema da humanidade não vai ser resolvido com um sistema melhor de priorização de tarefas, mas sim pelo reconhecimento que somos finitos.

De acordo com o publisher da Sextante, esse movimento de autores com fortes credenciais é diretamente influenciado pelos Estados Unidos. "A indústria editorial americana foi atrás da produção acadêmica e começou a produzir livros para um grande público", afirma.

Não é um movimento exatamente novo —basta lembrar títulos como "Inteligência Emocional", publicado pela Objetiva em 1996, do psicólogo e ex-jornalista do New York Times Daniel Goleman. "Mas a pandemia o pôs em outro patamar", avalia Pereira.

"Estava todo mundo muito fixado num modo de viver que era um tanto inabalável, e vimos isso derreter de uma hora para outra", destaca Suy, cujos livros figuram hoje nas listas de mais vendidos. "Esse cenário provocou depressões, muita ansiedade, mas também muitas revoluções pessoais e reinvenções. O resultado foi uma certa descrença nessa aposta mais infantil de que a resposta viria do outro", pondera.

auto-ajuda
A escritora Ana Suy - Kizzy Tonegawa/Divulgação

Na visão da psicanalista Maria Homem, as transformações catalisadas pela pandemia abriram espaço para um novo tipo de literatura. "Vivemos transformações profundas na maneira com que nos relacionamos com a vida e o mundo. Surgiu então uma demanda para tentar entender o que está acontecendo."

De acordo com levantamento da Nielsen, o mercado de autoajuda viveu dois saltos: um em 2019, quando a venda passou de 5 milhões para 6 milhões de exemplares devido ao fenômeno de livros sobre finanças, depois chegando a 6,53 milhões em 2021, impulsionado pela pandemia.

Em 2022, as vendas desaceleraram para 6,2 milhões de exemplares, num movimento considerado como uma "volta à normalidade" para Rodrigo Galano, analista da empresa.

Não à toa, os novos títulos tratam com frequência de temas como saúde mental, longevidade e bem-estar —que se tornaram cada vez mais presentes nas redes sociais graças, também, ao trabalho de influenciadores digitais responsáveis pela promoção de livros.

Pedro Pacífico, conhecido nas redes como Bookster, costuma divulgar mais obras literárias, mas vê esta nova safra com bons olhos, com potencial de trazer mais leitores para a ficção.

"De repente, ficou mais comum e aceito socialmente uma pessoa contar sobre os problemas que está enfrentando, justo no momento em que o mercado editorial começa a trazer cada vez mais obras que tratam desses temas com um olhar aguçado e sensível", afirma ele, que acaba de lançar o livro "Trinta Segundos sem Pensar no Medo" pela Intrínseca.

auto-ajuda
O escritor Pedro Pacífico - Renato Parada/Divulgação

Já Dani Arrais, jornalista e fundadora da plataforma sobre bem-estar Contente.vc, vê a divulgação de obras de autoajuda como uma boa oportunidade. "As dicas de livro acabam sendo um gancho para conversas sobre como estamos, o que queremos melhorar, o que nos angustia, como a gente lida com as diversas emoções que tocamos ao longo dos dias."

Outro fator determinante no fenômeno é a busca recente por maior representatividade de raça e gênero. "Quando falamos sobre conselhos para as pessoas terem sucesso, não dá para assumir que todo mundo se parece ou que é afetado de um mesmo jeito por questões como microagressões ou disparidade de salário", destaca Cleto, segundo quem diversas editoras passaram a buscar autores que escrevessem a partir de outros pontos de vista.

"Ampliamos o leque de autores e começamos a pensar na representatividade, na inclusão de autores com vozes diferentes, partindo de lugares de fala diferentes", aponta a editora da Fontanar.

É o caso do livro "Autocuidado de Verdade", da psiquiatra Pooja Lakshmin, que discute as contradições da indústria do bem-estar e reconhece que os problemas da mulher contemporânea são, em certa medida, insolúveis, em vez de apostar em cremes de beleza ou rotinas de sono.

Se essa nova safra da autoajuda já chama a atenção nas livrarias, ela ainda precisa lidar com algum histórico de preconceito inspirado por seus vizinhos de prateleira. Mas, pelo jeito, não será por muito tempo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.