Descrição de chapéu Artes Cênicas

'Pequod' encerra trilogia de peças de Mário Bortolotto sobre agruras familiares

Sequência, que começou em 1989 com 'Fica Frio', acompanha décadas da relação entre irmãos opostos em quase tudo

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São Paulo

Abre a porta da cabine do barco, até então preenchida apenas pelo marulho, e entra um homem franzino. Ele observa o ambiente, parece não gostar do que vê. Se resolve por sentar a uma mesa, não sem antes a limpar insistentemente com um lenço que carrega no bolso. Em completo silêncio, o gestual deste primeiro personagem em cena de "Pequod" carrega uma ansiedade que grita.

Cena da peça 'Pequod' - Cristina Jatobá/Divulgação

Maurício, como logo se passa a conhecer o personagem de Nelson Peres, é encontrado por Nando, encarnado pelo próprio dramaturgo e diretor da peça, Mário Bortolotto.

Depois de conflitos iniciais e a revelação do motivo da visita, a encenação se desdobra num pandemônio, em que mágoas do passado dividem espaço com o carisma e a angústia também de Lili, dama liberta de Rebecca Leão, e Castioni, demagogo asmático e inspirado vivido por Fernando Castioni.

"Pequod" é o terceiro elo de uma trilogia iniciada em 1989 com "Fica Frio". Na trama da primeira peça, o eternamente solitário Nando, na época em seus 20 anos —tal como Bortolotto—, sai de casa para ganhar o mundo. Maurício, seu irmão, vai atrás dele a pedido dos pais, dando início ao que o dramaturgo denominou uma "road peça", subtítulo que reflete suas influências beatniks e alude aos filmes "pé na estrada" que faziam tanto sucesso.

"Tempo de Trégua" trouxe de volta a dupla uma década depois, em 2000, para uma história natalina que não busca alentar corações. Nando volta à casa dos pais, à ocasião da festividade, para um reencontro complicado pela dissociação dos costumes do rapaz, já com seus 40 anos, e da família que deixou para trás.

"Pequod", que recebeu o nome do navio que naufraga em "Moby Dick", um dos livros favoritos de Bortolotto, traz Billy Joel no subtítulo para dizer que "só os bons morrem jovens" —uma má notícia para a dupla de irmãos. A peça encerra a história fraternal com o reencontro dos personagens já idosos, e não vem para resolver a relação árdua.

O diretor, um dos grandes nomes do teatro brasileiro, conta que ele mesmo sempre teve um quê de Nando. Saiu de casa aos 12 anos para estudar no seminário, não porque queria ser padre, mas porque queria ser livre. Ao longo da vida, diz que sempre manteve seu jeito desenraizado, cheio de viagens e amores efêmeros.

No caminho para seus 60 anos, encontrou tempo para fundar e liderar o Teatro Cemitério de Automóveis, levar dezenas de peças aos palcos e publicar alguns livros.

Para Nelson Peres, que já contracenou com Bortolotto várias vezes, o barco atracado em que se passa a nova peça é um refúgio para os solitários. "Os personagens ali carecem de afeto. São meio náufragos, e o barco faz esses náufragos boiarem. Mas o afeto deles é um sabonete, eles vão tentando apertar e ele vai escapando da mão."

Mas se engana quem acha que a trilogia é uma história sem amor, afirma Bortolotto. É apenas uma crítica à ideia do amor incondicional daquela família de comercial de margarina.

"Eu sempre discuti essa questão da família. Descama nessa coisa meio careta, que se ligou com o governo Bolsonaro. Famílias são desarranjadas por natureza", diz o diretor. "As pessoas criam muitas expectativas em relação à família. Por causa dessa cobrança de amor, acabam acontecendo muitas rusgas."

A felicidade também recebe seu ceticismo. "É uma bobagem que os publicitários inventaram para enganar a gente. O Nando sabe que, com o caminho que ele escolheu, não tem como ele ser feliz. Ele vai ser melancólico, sabe que vai se sentir sozinho. Ele sabia que ia ser triste, mas pelo menos ele não é frustrado."

Questionando a família, a felicidade e carregando sua história de personagens ácidos com ideais trôpegos, não seria surpreendente se parte da plateia não digerisse bem sua peça. Bortolotto afirma que não se importa se o público vai se incomodar com suas obras.

"Eu não tenho paciência com essa coisa politicamente correta. Eu acho que a arte tem que ser perigosa, incomodar o público. Ela não pode ser doce, tem que ser perigosa, afrontar.

Pequod - Só os Bons Morrem Jovens

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